Crítica | Viver a Vida
EM MEIO A QUARENTENA, IMPUS PARA MIM MESMO A META DE ASSISTIR AO MÁXIMO DE FILMES POSSÍVEL, ALGO QUE ESTOU CATALOGANDO PELA PRIMEIRA VEZ.
Mas, confesso, fiquei preguiçoso com a enorme quantidade de canais liberados na TV fechada e me limitei às programações - que oferecem, ao menos, dois bons filmes por dia, é verdade. O problema é que não há qualquer sequência ou lógica em assistir a estas obras, então decidi que o melhor era escolher um diretor e assistir uma sequência de seus filmes. O escolhido da vez: Jean Luc Godard e sua contribuição para a Nouvelle Vague.
*Alguns destes filmes são clássicos e já foram analisados extensivamente, então coloco como objetivo pessoal comentar aspectos que continuem relevantes até hoje, 2020.
Considero “Viver a Vida” como uma sequência espiritual de “Acossado”.
O terceiro filme de Godard novamente traz a história de uma linda jovem, perdida na vida e em uma jornada para descobrir quem é de verdade em um mundo dominado por homens. Porém, diferentemente de Patricia, Nana é muito menos complexa, o que não a torna menos fascinante.
Dividida em doze capítulos, acompanhamos sua trajetória por curtos, mas intensos 85 minutos de projeção, onde a jovem de 22 anos larga marido e filho - algo que nunca descobrimos o real porque - para se tornar uma atriz, falha e, precisando de dinheiro, decide se prostituir. Esta última uma vida da qual não consegue se desvencilhar e agora, tem de viver.
Adotando um estilo consideravelmente diferente daquele em “Acossado” que, na época, fazia tsunamis (sim, New Wave, piada, ha) na indústria cinematográfica, Godard deixa os jump cuts de lado e aposta em planos longos, repletos de pan shots que requerem não apenas um controle completo da misé-en-scene, mas de todo o talento de Anna Karina que, desta vez, não divide os holofotes com ninguém. Estas escolhas se mostram mais do que necessárias para comunicar os temas existencialistas da narrativa, e o efeito não poderia ser mais assombroso: somos transportados para dentro daquele mundo preto e branco, graças tanto ao visual como ao sonoro, sendo que o tema que segue Nana é ao mesmo tempo belo e trágico, ao passo que o design de som é um dos mais naturais que lembro de ter ouvido. Em uma cena no bar, ouvimos os copos sendo limpos e guardados, as bebidas sendo servidas, o baixo burburinho a volta. É uma experiência de imersão completa.
De acordo com o próprio Godard, vários das cenas foram gravadas na primeira tomada, algo que o mestre Roger Ebert aponta como fundamental em nossa percepção. Aqui, as câmeras de Raoul Cotard assumem o papel da nossa visão, hipnotizada pela beleza de Karina e por tudo que ela faz em tela, desde como fuma um cigarro após o outro, a como dança, a como sorri.
Também substancial em seus significados, uma das rimas mais poderosas do longa começa em uma fala logo no primeiro capítulo, onde Nana é aconselhada a se emprestar para os outros, mas se dar apenas a si mesmo, enquanto somos impedidos de ver seu rosto por completo até o momento onde ela se prostitui pela primeira vez. No primeiro capítulo a vemos pelo reflexo de um espelho, nunca de frente. Em outro, seu rosto está em foco, mas com uma sombra o cobrindo. Em outros, a vemos por diversos ângulos, mas nunca de frente. Já quando ela tem seu primeiro cliente, é como se perdesse todas as defesas e, ao notar isso, podemos entender um pouco da sensação devastadora que ela deve ter sentido.
Escrito de forma filosófica e poética por Godard, é como se cada capítulo apresentasse novos personagens, todos aconselhando Nana e, por mais que sempre seja possível aprender mais sobre ela, é difícil julgar se ela própria está aprendendo qualquer coisa. Após se acostumar com a profissão, algo que Godard evidencia em um sumário com uma narração desprovida de sentimento, onde o narrador comenta que uma prostituta pode se deitar até com 60 homens em um dia, Nana parece confortável e até aprecia o desejo que seus clientes tem por ela. “Vai ser bom”, ela diz para um deles pedindo que pague além do estipulado. Ali não há mais a vontade de se tornar atriz, de suceder na vida, ela parece presa ao que lhe fora dado.
Mas talvez o diálogo mais marcante seja com o personagem nomeado de o Filósofo, interpretado por Brice Parain. Nele, Nana diz que volta e meia sabe o que quer dizer, mas não sabe como dizer, para então ouvir uma história sobre Porthos, membro dos Três Mosqueteiros que, de acordo com Parain, nunca havia pensado na vida e, quando pensou, morreu. A analogia é tão dura como triste, afinal, Nana, em meio a uma sociedade machista e que praticamente roubou tudo que ela tinha para dar, não mais tem o direito de pensar e ainda argumenta a favor disso, sem saber o quanto esta postura a prejudica. Em um momento aterrador, ela olha para tela, para nós, com olhos submissos, como que esperando uma punição. Seja quem for que fosse antes, é isso que se tornou, uma mulher encurralada e sem perspectiva de se libertar.
Outro estudo de personagem inquietante, “Viver a Vida” é irônico até em seu título. Ao tentar viver sem se preocupar ou pensar, Nana experimenta um fragmento de vida em prol dos interesses de outros, e julga isso como algo que a satisfaz, pois este é o mundo que agora conhece. Na cena final, onde é assassinada e deixada na rua, vemos aonde sua trajetória a levou. O mais solitário esquecimento, pois nem ela própria sentia mais por si.