Crítica | O Pequeno Soldado
EM MEIO A QUARENTENA, IMPUS PARA MIM MESMO A META DE ASSISTIR AO MÁXIMO DE FILMES POSSÍVEL, ALGO QUE ESTOU CATALOGANDO PELA PRIMEIRA VEZ.
Mas, confesso, fiquei preguiçoso com a enorme quantidade de canais liberados na TV fechada e me limitei às programações - que oferecem, ao menos, dois bons filmes por dia, é verdade. O problema é que não há qualquer sequência ou lógica em assistir a estas obras, então decidi que o melhor era escolher um diretor e assistir uma sequência de seus filmes. O escolhido da vez: Jean Luc Godard e sua contribuição para a Nouvelle Vague.
*Alguns destes filmes são clássicos e já foram analisados extensivamente, então coloco como objetivo pessoal comentar aspectos que continuem relevantes até hoje, 2020.
Filmado em 1960, enquanto “Acossado” tomava conta do mundo, mas lançado apenas em 1963, “O Pequeno Soldado” é a primeira aventura política de Godard e, também, seu primeiro filme cujo apuro técnico me faz questionar seu valor para o espectador de hoje.
Nele, acompanhamos Bruno Forestier, um agente duplo refugiado em Geneva para evitar o alistamento na França, que é encarregado de matar um homem, mas se recusa e falha por diversos motivos. Enquanto isso, Bruno se apaixona por Véronica, uma ajudante do partido nacionalista da Argélia, FLN, e tem planos de fugir com ela para o Brasil (vejam só!).
Visualmente uma síntese de suas forças, em “O Pequeno Soldado” Godard aplica os jump cuts de forma mais sútil e para conectar momentos mais distantes - em um, o movimento de um personagem caminhando é seguido por o de um carro, ambos centralizados na mesma altura - e faz seu usual passeio pelos ambientes, ao passo que por mais que as panorâmicas sejam menos impressionantes que em “Viver a Vida”, ainda tem um papel essencial em seguir Bruno por todos os lugares onde vai. Também similar ao filme estrelado por Anna Karina, que aqui vive Véronica, neste assumimos o papel da câmera como os observadores que perseguem Bruno, o que reforça a paranoia com que ele tem de conviver. Em uma cena o vemos por trás de uma janela, em outra por trás de um carro, em tantas outras várias pessoas passam em frente a câmera, é uma naturalidade que nos impede de não seguir-lo obsessivamente, como se estivéssemos escondidos em uma parte do cenário que nem enxergamos.
Godard e Raoul Cotard, seu cinematógrafo usual, brincam consideravelmente com o papel da câmera aqui, especialmente em uma reveladora cena onde Bruno e Véronica assumem nossos olhares. O que eles veem é o que nós vemos, um ao outro, mas o que veem não deixa de ser mais vago, pois em momento algum decifram o que veem de verdade. Por consequência, para nós a tarefa também é quase impossível.
Porém, ao analisar sua relação, podemos sim aprender muito sobre seus personagens, mas mais sobre o mundo onde vivem. Em uma cena Bruno encurrala Véronica em uma vidraça e a acusa de não saber se oferecer a outros homens - mais uma vez, Godard retratando o machismo latente da sociedade na época, mesmo que não seja ela nossa personagem principal. A imagem é desconfortável, claustrofóbica, e o fato de termos apenas vidro atrás dela pode até mesmo reforçar a ideia de que a própria não tinha nada em que se apoiar.
Mas por mais reveladora que seja, desta vez a relação de seus personagens é menos importante do que a batalha que Bruno faz consigo mesmo. Por vezes se olhando no espelho, e dizendo que a imagem que enxerga é diferente da que imagina, fica claro que este está em uma encruzilhada na vida, em busca da própria identidade, algo que reflete em sua inabilidade de concretizar qualquer ação. Interpretado de forma introspectiva e quase inexpressiva por Michel Subor, Bruno sabe menos sobre si do que nós sabemos sobre ele, o que poderia ser fatal para ligarmos com seu destino caso Godard não fosse um mestre em nos colocar na mesma página que seus personagens.
Porém, se “Viver a Vida” tinha um design de som magistral, o de “O Pequeno Soldado” empalidece de forma preocupante. Não sei bem se foi por conta da qualidade a qual assisti ao filme - a melhor que consegui encontrar -, mas todas as vozes pareciam dubladas, e o som ambiente fora quase extinto, tornando cenas como a da tortura - que graças aos parâmetros de hoje parece apenas um incômodo (reza a lenda que Godard realmente torturou Subor) - consideravelmente menos impactantes, impedindo nossa imersão na dor de Bruno. Além disso, o excepcional trabalho de edição nas cenas passadas em carros evidencia ainda mais o fato de não ouvirmos o som dos mesmos, o que contribui para tornar esta obra em algo que, bem, talvez Godard realmente queria, uma visão impessoal sobre um personagem que jamais faz questão de ser gostável.
Narrativamente menos conciso que “Acossado” e “Viver a Vida”, “O Pequeno Soldado” é um exemplo do visionarismo técnico de seu realizador e mais um estudo de personagem profundo e complexo. Não ligo para o fato de não termos quase nenhum contexto verossímil quanto à guerra na Argélia, a impessoalidade era um objetivo, mas não consigo deixar de me perguntar o quão melhor o filme ficaria com um design de som mais, digamos, convencional.