Crítica | Pelé
No início de 2020, e da pandemia, a Netflix lançou uma série documental retratando a carreira de Michael Jordan com o Chicago Bulls. A recepção, nos Estados Unidos, foi universalmente positiva, apesar das polêmicas que a série trouxe ao evidenciar o que qualquer conhecedor de MJ (me considero um deles) já sabia: Michael Jordan era um ser humano extremamente problemático. Ainda assim, todos amaram se irritar, se emocionar, aprender, discordar daquilo que fora mostrado e o próprio doc deve servir como fonte de inspiração para obras futuras. Foi um marco cultural.
Infelizmente, em terra de BBB, caos e retrocesso, duvido que sequer reparem neste filme sobre a carreira do maior jogador de futebol de todos os tempos, de nome simples como o homem em que é baseado.
Pelé.
Na verdade, mais importante que falar sobre o filme em si seria falar sobre como desdenhamos de Pelé com o tempo, por conta de mitos espalhados pela internet e histórias mal esclarecidas, como a dele com a filha “renegada” ou sua omissão em se posicionar política e socialmente. Mas embora vá abordar estes temas a seguir, entrar afundo neles é assunto para outro texto.
Pois como filme, “Pelé” é um belo, as vezes comovente, retorno ao passado do brasileiro mais reconhecido mundo a fora que já viveu. Curto, talvez em demasia, um filme apenas não seria o suficiente para abordar tudo que passou na vida pessoal e profissional, e de cara sinto como se as muitas histórias que poderiam ser contadas de cada Copa continuassem escondidas. Em contrapartida, o arquivo de imagens resgatado pela dupla de diretores David Tryhorn e Ben Nicholas (me irrita o fato de não serem cineastas brasileiros, mas ironicamente denota com perfeição nossa relação conturbada com Pelé) é simplesmente inacreditável, com gravações pouco rodadas de todas as Copas, e do próprio Pelé em outros momentos. Justamente por isso, a falta de contexto de alguns daqueles momentos incomoda, como por exemplo o fato de a Copa de 70, no México, ser a primeira a transmitir jogos mundialmente e a cores. Outros elementos também foram praticamente esquecidos, como as turnês que o Santos fazia pela Europa e o fato de Pelé ter parado guerras mundo a fora.
Já a habilidade dos cineastas em conectar o passado com o presente gera momentos emocionantes, como um logo no começo onde, após uma rápida montagem mostrando o esplendor de Pelé em seu auge, vemos o homem já com 80 anos, necessitando de um andador e claramente irritado com este após se sentar no cômodo vazio onde dá a entrevista. Seu reencontro com os parceiros de Santos também merece destaque, e eu poderia tranquilamente ter visto mais uma boa hora deles relembrando suas memórias. O próprio Pelé, um homem que viu e ganhou o mundo na mesma proporção que pouquíssimas pessoas conseguiram (ao lado de, diria, Beatles e Michael Jackson), não segura as lágrimas ao, acredito, relembrar seu glorioso passado e saber que ele não volta.
Também comovente é sua simplicidade e, principalmente, sinceridade ao responder perguntas que me admirei terem passado. Seu “papel” na ditadura e na luta social do Brasil não parece ser algo que lhe orgulhe, mas também não tira seu sono, pois como o próprio disse em uma entrevista: “se toda vez que eu fosse alvo de racismo parasse um jogo, teria de parar todos que joguei”. Muitos apontam para o fato de que nomes como Bill Russell e Muhammad Ali falaram contra o sistema e o racismo, mas como bem apontado por um dos entrevistados, nenhum dos dois vivia em uma ditadura. Ainda assim, sinto como se o documentário pudesse ter ido além, como se Pelé pudesse ter tido uma espécie de reconciliação ou justificativa (também sobre sua filha), mas infelizmente isso acaba vindo das vozes de outras pessoas.
No fim, “Pelé” não conquista tudo que poderia, seja pelo pouco tempo de tela, ou pela falta da própria brasilidade em sua confecção (vejam “AmarElo” por exemplo). Mas também, o que esperar de um país que renega aquele que é o seu maior símbolo cultural? Se fossemos depender de nós para honrá-lo, teríamos de esperar pelo dia em que nos deixará, mas, como o próprio Emicida disse em seu documentário: devemos dar as flores enquanto as pessoas ainda podem cheirá-las.