Crítica | Judas e o Messias Negro
Em uma temporada de premiações com três filmes envolvendo o mesmo contexto histórico e se passando em um período de cinco anos, talvez o que mais mereça destaque seja este de Shaka King sobre o infame assassinato de Fred Hampton, um líder do partido dos Panteras Negras em Chicago, em uma operação conjunta do FBI, da polícia e de William O’Neal, um informante infiltrado no movimento.
King, que tem apenas um filme no currículo (e este nem página na Wikipédia tem), curiosamente divide o sobrenome com Regina, diretora de “Uma Noite Em Miami”, e roda “Judas e o Messias Negro” em Chicago, que batiza “Os 7 de Chicago”, de Aaron Sorkin. Porém se Regina apela para o intelecto e as muitas linhas de pensamento envolvidas na luta contra o racismo, terminando em uma nota triste, mas esperançosa, e Sorkin apela para a falsa ideia de que a humanidade tem salvação graças ao trabalho de alguns poucos, o longa de King é consideravelmente mais pessimista.
Iniciando com uma reprodução do depoimento dado por O’Neal para um documentário sobre o caso nos anos 90, e seguindo para uma tomada em plano sequencia que imediatamente me levou de volta para o início de “Corra!” (em cena também protagonizada por Lakeith Stanfield), o cineasta acusa desde cedo o principal e mais recorrente problema da projeção: a inconsistência do tipo de abordagem escolhido para contar a história que tinha em mãos. Em suma, é difícil não ficar atônito e impactado pelo ocorrido, inclusive o título não poderia ser mais apropriado, mas este título também traz consigo um grau de seriedade e, por que não, ironia, esta que jamais dá as caras. Claro que nem todo diretor aborda raça da maneira que faz Spike Lee, mas a impressão que tive é que faltou liberdade e controle da própria obra à King.
Vejam: adotando O’Neal como o protagonista, não é como se o roteiro (do próprio King em parceria com Will Berson) oferecesse mais do que o que já sabemos antes do começo da projeção sobre o homem. Graças ao talento de Stanfield é possível perceber que, preso entre dois mundos que o matariam sem pestanejar, seu único objetivo era sobreviver e que isso falava mais alto que seu princípio de remorso quanto ao papel que adotou, mas ao adicionar sub-tramas que parecem perdidas em meio à narrativa (uma delas envolvendo o assassinato de outros dois jovens que parece estar ali apenas para reforçar o clima hostil e sangrento que pairava pela cidade no momento) King prejudica não apenas nossa relação com este trágico protagonista, mas o ritmo do longa. A impressão é que a incerteza na direção se transferiu, também, para a montagem de Kristan Sprague, construindo uma primeira hora arrastada sem jamais utilizar isso em favor de desenvolver seus personagens, inserindo as regravações do depoimento aqui e ali sem lógica ou conexão nenhuma, manuseando estas sub-tramas de maneira a tornar a narrativa confusa e atingindo o ápice em uma cena inexplicável, onde o agente do FBI, Roy Mitchell, parece se lembrar de algo que jamais viu (!).
Mas se parece estranho eu estar criticando um filme que falei que merece mais destaque que outros dois similares, dos quais gostei (basta ler as críticas de cada), é apenas porque acredito que em sua melhor (e hipotética) versão “Judas e o Messias Negro” seja um grande filme, algo que os outros dois, ao menos para mim, nunca pareceram. Pois se Regina é contida demais com o material que tinha em mãos, e Sorkin é burocrático e fajuto em excesso, o longa de Shaka King tem corpo, alma e uma raiva contida que reflete muito mais o período que cobre do que seus irmãos de temporada.
Fotografado de maneira quase lúgubre, mórbida pelo veterano Sean Bobbitt, é como se a Chicago que víssemos jamais tivesse um sol brilhante, como se os tetos e paredes fossem sempre pequenos demais para o partido, como se as cores achocolatadas e escuras de suas roupas já estivessem pré-manchadas pelo sangue que estavam dispostos a derramar. E muito disso se deve à energética performance de Daniel Kaluuya, discutivelmente o ator mais talentoso de sua geração, que aqui interpreta um homem que vai fazer você esquecer da postura calma, de emoção reprimida de Chris - até hoje seu papel mais marcante. Emulando em partes a voz e entonação de Hampton, mas tomando liberdade de dar seu toque ao personagem, é curioso perceber o contraste entre a timidez ao falar com sua futura esposa, que o faz se encolher, e a postura marrenta que adota em seus discursos, chegando e demandando atenção de todos presentes imediatamente - e vê-lo convencendo um grupo de caipiras é particularmente fascinante.
Além disso, algo que me impressionou foi a semelhança física de Kaluuya com Zé Pequeno, e até do próprio filme (em uma cena vemos um jovem matando um policial em contra-plongé, assim como o próprio fez para conquistar a Cidade de Deus) que, caso fosse melhor montado e desenvolvesse seus personagens de apoio, poderia ter se aproximado do clássico brasileiro.
Mas se as cenas o envolvendo exalam a maior força do cineasta, os encontros entre O’Neal e Roy (Jesse Plemons bem, como sempre, mas limitado pelo roteiro) se tornam repetitivos cedo, não se tornando entediantes apenas pela tensão em sua relação e por alguns planos interessantes empregados por King, como aquele onde um quadro é posicionado entre os dois, ou outro mais para o final quando a câmera se encontra posicionada à uma mesa de distância, dando a impressão de que seus integrantes estejam ali para o caso de O’Neal não concordar com os acordos, em uma das poucas sacadas que nos fazem ver sua paranóia, mesmo que de fora. Em contra partida, Martin Sheen precisa de pouco para tornar sua absoluta tirania em algo assustadoramente crível, e assistir a evolução do próprio Stanfield é intrigante: conforme a narrativa avança, seu olhar se torna trêmulo, sua postura diminuta e ele parece estar sempre suado e apressado. Já Dominique Fishback é, também, limitada pelo roteiro à ser a companhia e parte humana de Hampton, algo que a talentosa e bela atriz tenta, mas não consegue fugir.
Ainda assim, o que faz deste filme um soco no estômago, que te mostra a dor da realidade de maneira infinitamente mais fiel que os outros dois é sua cena final, onde vemos o quase massacre provocado pelo FBI e pela polícia. Quase todo no escuro, e com uma mixagem de som seca que inteligentemente esqueceu o jazz do restante da projeção (trilha sonora operante, mas dispensável, diga-se), o impacto se torna ainda maior por sabermos que ele viria, e pela decisão acertada de King de nem ao menos mostrar o rosto dos assassinos, pois apesar de efetuarem os 99 disparos (contra apenas um dos Panteras), as mortes de Hampton e de Mark Clark sujaram as mãos de tantas pessoas que seria impossível contar.