Crítica | Uma Noite Em Miami
No papel, a história da peça de mesmo nome, de 2013, não poderia ser mais intrigante e relevante para o momento que vivemos. Malcolm X, Muhammad Ali, Jim Brown e Sam Cooke - ou caso você não saiba quem são pelos nomes: um dos maiores líderes do movimento de direitos civis dos EUA, o maior pugilista de todos os tempos, um dos maiores jogadores de Futebol Americano e o Rei do Soul - se juntam na noite após Ali se tornar campeão mundial pela primeira vez e discutem seus papéis como negros na América.
E não é que sua execução deixe a desejar, “Uma Noite em Miami” é um bom filme… mas poderia ser muito mais que isso.
Semelhante ao recente “A Voz Suprema do Blues”, que com personagens muito menos marcantes consegue marcar muito mais do que esta estreia de Regina King na direção, o longa não chega a denunciar tanto sua origem no teatro como aquele filme, por mais que ela seja perceptível a partir do segundo ato. Porém a cineasta opta, de maneira acertada, por nos apresentar os quatro homens individualmente, passando por uma luta de Ali (bem filmada, mas pouco realista) e um show revoltante de Cooke (onde a plateia, branca, se recusa a lhe dar uma chance), tentando justificar a existência do filme nas telonas. Menos cinematográficos, mas igualmente importantes narrativamente estão a conversa de Jim com o único vizinho que não o rejeita, isto é, até que este recuse abrir a porta da casa para que Jim entre com uma naturalidade demoníaca, e a dificuldade de Malcolm X em equilibrar seu papel como militante, pai e marido.
Figuras de importância inegável na luta por direitos nos Estados Unidos e todos donos de personalidades e histórias de vida fascinantes e que, por si só, renderam outros filmes, é difícil não se sentir magnetizado pela simples ideia de juntar os quatro homens para uma noite de conversa que, supostamente, aconteceu. Mais interessante ainda é que ela precedeu a polêmica decisão de Cassius Clay de se converter ao Islã, adotando, então, o nome pelo qual ficara conhecido. E Regina, claramente talentosa por trás das câmeras e que deve se aperfeiçoar ainda mais conforme avança na carreira (e que Hollywood a dê espaço é fundamental), joga bem com as personalidades conflitantes de todos: X e seu radicalismo, Cooke e sua calculada complacência, Brown e seu entendível cinismo e merecido egoísmo, Ali com sua personalidade maior que a vida, pomposo e convencido da própria grandeza (que existiu, afinal é, com Pelé e Michael Jordan, um dos três maiores atletas da história).
Passando mais de dois terços do filme em um quarto de hotel, Regina se utiliza bem do espaço confinado para refletir a trajetória da conversa: no começo, quando descontraídos, o quarto parece confortável o suficiente para todos, mas conforme as tensões aparecem é como se as paredes se encurtassem a sua volta. Logo percebemos, também, a paranoia que tomou conta de Malcolm X nos momentos que precederam seu assassinato, culminando em um belíssimo plano onde ele olha pela janela de um bar e as luzes vermelhas do letreiro indicam a violência que lhe aconteceria. Menos eficaz é a habilidade da diretora em tornar física a presença, de certa forma, opressora do Islã na vida de seus convertidos, pois apesar de o segurança interpretado por Lance Reddick ter um olhar penetrante, jamais sentimos como se X apresentasse qualquer preocupação quanto a isto. Além disso, o filme sofre de falta de ritmo, e falha em provocar a tensão que deveria em certas cenas, que se resolvem fácil demais.
Com uma trilha sonora agradável, que em diversos raccords elegantes nos mostra que, na verdade, quem a conduz é o próprio Cooke, e a fotografia de Tami Reiker, construída com paletas achocolatadas que remetem a uma foto envelhecida (como as que X tira em diversos momentos), Regina orquestra bem para que o filme seja, literalmente, uma memória agridoce, mas ainda calorosa na, e da, vida daqueles homens. O que rima perfeitamente com o discurso do filme sobre legado e como este é algo que jamais sai da cabeça de qualquer um deles.
Interpretados com uma qualidade homogênea, destaco os maneirismos polidos, quase advindos de T.O.C. de Kingsley Ben-Adir, como X, que podem soar exagerados, mas são apenas uma extensão de sua caracterização como o ativista, que sem a necessidade de “um monólogo de Oscar” consegue emocionar com a dúvida que coloca na própria voz e ideais, além de evocar todo o terror de um pai que tem de tirar as filhas de casa pois esta foi colocada em chamas. Aldis Hodge, escanteado como Mc Ren em “Straight Outta Compton”, finalmente tem espaço para brilhar e consegue evocar toda a segurança que tornaram Brown uma estrela do Cinema após o fim de sua carreira na NFL, mas também um claro receio e cinismo que adotou como auto-defesa. Por sua vez, Leslie Odom Jr. impressiona nas cenas de canto, me convencendo como poucas vezes de que o ator estava, de fato, performando aquela canção, e percebam os traços de culpa e vergonha que passam brevemente por seu rosto quando confrontado quanto suas atitudes com relação a população branca. Já Eli Goree lembra fisicamente Ali, mas jamais consegue transmitir com a mesma naturalidade sua paixão pela própria grandeza.
Mas mesmo que o texto, adaptado para o cinema pelo próprio autor da peça, Kemp Powers (que também escreveu e co-dirigiu “Soul”!), consiga mostrar os variados pontos de vista acerca da luta pela igualdade e pelo próprio significado de liberdade, sinto como se faltasse algo para que pudesse chamar este de um grande filme. Talvez maior ousadia por parte da diretora, talvez algum momento mais incisivo, talvez estar mais próximo ainda dos homens do que dos ícones. Talvez uma maior ambiguidade ao retratar o Islã, o qual X chega a questionar apenas para, cenas depois, receber Ali na Nação.