Crítica | AmarElo - É Tudo Pra Ontem
Raramente, se alguma vez, escrevi sobre documentários para o Outra Hora, se é que “AmarElo” possa ser chamado só de documentário.
Novo projeto do rapper Emicida lançado diretamente na Netflix, o filme mostra os bastidores da produção de seu álbum de mesmo nome (lançado em 2019) e do show feito pelo artista no Theatro Municipal de São Paulo, mas vai além e reconta todo o processo histórico e de descobrimento feito por trás de cada som que ouvimos no disco. Assim, Emicida faz uma viagem no tempo, aos primórdios da luta contra escravatura e, também, do que chamamos hoje de cultura brasileira.
Narrado por ele com uma voz que não poderia passar mais compreensão, afeto e orgulho de conhecer de onde veio, “AmarElo” provoca sentimentos conflitantes: por um lado ficamos maravilhados ao descobrir partes de nossa história que a escola falhou em sequer mencionar, por outro deveríamos nos sentir envergonhados por não conhecer figuras como Tebas e Luis Gama, pioneiros na luta contra a segregação racial no país, ou de não reconhecermos a gigantesca Ruth de Souza na mesma proporção que, por exemplo, Fernanda Montenegro (que me fez ir às lágrimas em sua linda participação aqui). Além deles, o longa dirigido por Fred Ouro Preto nos situa na linha de tempo do samba e do hip-hop no país, nos apresentando à grupos como “Os Oito Batutas” e os “Originais do Samba”, além, é claro, de artistas contemporâneos como Marcelo D2 e Racionais MCs.
Todos estes representam apenas uma fração da quantidade de artistas e ativistas mencionados ao longo dos 90 minutos e mostram como, diferente de outros países, temos um hábito de não catalogar e registrar nossa história, tanto a social e política como a cultural. Inclusive, apoio fortemente um novo doc: “Fazendo AmarElo”, onde o processo de pesquisa seja colocado em tela.
Mas o docushow funciona não apenas como uma lupa para o passado, e sim como uma obra que torna o tempo um conceito fluido (de maneira que o próprio Christopher Nolan jamais seria capaz de emular), algo expresso já em seu sub-título. Com “AmarElo”, Emicida quer mostrar que a luta do passado pode ser recompensada hoje, que nada foi em vão e que, apesar de constantemente deixarmos para homenagear nossos ídolos e entes queridos após nos deixarem, a essência de tudo que conquistaram continua viva. Por isso, é tão emocionante vê-lo lado a lado com seu ídolo Wilson das Neves que, apenas por imagens, me parece ter adotado e enxergado em Emicida uma continuação de sua própria jornada, assim como um grupo de membros veteranos da primeira organização anti-racista do país, que ao se levantarem com os punhos fechados são ovacionados por sua vida de resiliência. Também capaz de provocar lágrimas são as reações da plateia, muitos que talvez nunca sonhariam em estar ali, algo que o artista comenta mais de uma vez quando encorajando seus colegas de palco com discursos dignos de serem repetidos antes do Hexa.
E se como documentário a obra é irretocável, como show expande as histórias que conta mostrando toda a diversidade de cores e esplendor presentes em um país que, constantemente, esquece que é culturalmente inigualável. A direção de arte, de André Juventil, ilustra o passar do tempo e suas figuras com animações dignas de serem emolduradas (e premiadas!), ao passo que a produção do show num todo, comandada pelo irmão de Emicida, Evando Fióti, merece aplausos pela beleza de seus cenários e por tornar o imponente Theatro e um lugar vivo e verdadeiramente brasileiro. Por fim, a montagem encabeçada por João Paulo Amato, Fernando Faria Freitas e Rodrigo Sobreiro não apenas alterna entre as imagens caseiras e gravações reais com as performances de maneira envolvente, mas auxilia na catarse provocada por momentos como a força estrondosa de “Pantera Negra” (música de 2018 ainda mais imponente agora, após a morte de Chadwick Boseman), que é acompanhada por um jovem cantando com toda sua vida de fora do Theatro enquanto a performance acontece, e a humilde esperança de “Principia”, que nos permite ver as lágrimas do Pastor Henrique Vieira emocionado por fazer parte daquilo tudo. Mas, é claro, a melhor música sobre 2020, mesmo que lançada em 2019, é a escolhida como a cartada final.
Aliás, “AmarElo” é a melhor música sobre todos os últimos anos neste país e, nas distintas e marcantes vozes de Pablo Vittar e Majur, repete incessantemente a poética, engraçada e genial frase de Belchior: ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro.
Como escrevi na primeira frase deste texto, raramente escrevo sobre documentários. Apesar de terem, em tese, um compromisso maior com a verdade, gosto das muitas formas como o cinema consegue contar histórias, reais ou não - afinal, o próprio conceito de real é, também, fluido e nem sempre me atrai mais do que a habilidade de criar algo do zero. Mas em “AmarElo” Emicida nos conta muitas histórias que poderiam, e deveriam, ter se tornado filme, mas que fomos ensinados a esquecer. De tudo o que assisti em 2020 (e foram mais de 250 filmes), nenhum me emocionou tanto, porque nenhum é tão carregado como esta carta de amor do maior artista que o Brasil produziu no século 21, onde, ao reconhecer tudo e todos que permitiram ele o ser, ele mostra que sim, o hoje pode fazer jus ao ontem, desde que esteja sempre buscando chegar ao amanhã.