Crítica | O Homem Invisível
Uma das coisas mais divertidas que o cinema proporciona é a possibilidade de assistir à diferentes versões de uma mesma história, separadas por décadas de distância e com leituras completamente diferentes que retratam a época em que foram feitos. E apesar de a maioria destes remakes, reboots ou sequências falharem miseravelmente do ponto de vista artístico (na maioria das vezes fazem muito dinheiro), volta e meia um ou outro consegue não apenas reavivar a obra original, mas adicionar novas camadas à sua existência.
É o caso do melhor suspense de 2020, a nova (e vigésima, nas minhas contas) versão de “O Homem Invisível”.
Baseado no livro de 1897 de H.G. Wells, mas se permitindo diversas liberdades para situar a história no século 21, o filme acompanha Cecilia que, após abandonar - ou melhor, escapar - o marido, descobre que o mesmo se suicidou logo depois, mas estranhos acontecimentos a levem a acreditar que ele ainda está em sua volta.
Logo antes de conferir o filme, com meses de atraso por conta da Covid, decidi assistir também à primeira adaptação com curtas nove décadas de atraso, sendo que o filme de James Whale foi lançado em 1933 e a experiência não poderia ter sido mais completa. Se o primeiro envelheceu mal em alguns de seus aspectos (tem uma senhorinha que grita descontrolada… o tempo todo), o uso de efeitos práticos continua impressionante e as cenas onde o Homem Invisível “aparece” são de cair o queixo. Mas mais importante: se aquele filme focava no impressionismo de uma população muito menos esperta que a de hoje (isso parece absurdo quando olhamos para 2020, mas é verdade…) e envelheceu para se tornar uma divertida comédia, o longa de Leigh Whannell figura como um suspense intenso e sufocante desde a primeira cena até seus caóticos momentos finais.
Iniciando a projeção com um plano aberto de uma mansão isolada e rodeada por um mar agitado, o cineasta, em apenas seu terceiro trabalho como diretor, nos dá as más vindas ao mundo de Cecilia logo de cara. A escuridão reina no exterior da propriedade - os créditos iniciais, inteligentemente, surgem com o bater das ondas e são quase imperceptíveis - e dentro dela, onde os cômodos espaçosos parecem uma prisão opressora (aplausos para o design de produção), justamente por sabermos que não há, literalmente, para onde fugir. Aliando esta escuridão, brilhantemente fotografada por Stefan Duscio, à movimentos sutis de câmera que lembram um misto de David Fincher e aquilo assistido em “Atividade Paranormal”, Whannell sempre nos deixa esperando por algo, como se todos os 90 anos que se passaram desde a primeira versão tivessem nos ensinado que quando a câmera para em algum lugar, é porque algo irá acontecer. E quem diria que o óbvio funciona: em um filme sobre invisibilidade, o não acontecer é justamente o que mais assusta.
Te deixando na dúvida quanto à existência do Homem Invisível até mais da metade da projeção, Whannell procura ilustrar o que a sociedade machista faz com sua parcela feminina, sendo que Cecilia é rapidamente questionada por todos, que não demoram a duvidar de sua sanidade mental sem tentar entender o que ela poderia estar passando, ou passou no relacionamento abusivo que conseguira escapar. Mas a tensão do filme se mostra ainda mais relacionável por fazer um paralelo com o estado de observação total que foi levantado a alguns anos por Edward Snowden, pois com certeza você vai se pegar paranóico após o filme porque, bem, não há realmente como saber se não há ninguém te espionando no momento.
E Elizabeth Moss, uma das atrizes mais talentosas de sua geração e que deveria ser indicada ao Oscar por seu trabalho aqui (embora isso seja impossível para a Academia que ainda está em 1933 e não reconhece filmes de gênero como deveria), encarna toda a paranoia de Cecilia de maneira angustiante. A atriz vai a extremos tão intensos que cheguei a me questionar quanto à verdadeira natureza do filme, e digo com pesar que, ao descobrir a verdade por trás de sua paranóia, sinto como se um pouco do impacto houvesse se perdido. Afinal, o barulho na cozinha a noite é sempre mais assustador do que aquilo que o causou. Mas se Whannell não poderia evitar isto sem mudar drasticamente o filme que tinha em mãos, o roteiro, também assinado por ele, faz um trabalho convincente de transformar o ato final em um enfrentamento cerebral, finalizado de maneira gratificante para nós, mas jamais positiva para sua protagonista.
Com um elenco de apoio sólido, mas com pouco para fazer se não reagir à trama principal, uma das coisas que impede o longa de subir de patamar é justamente a falta de complexidade de seu vilão, cujos atos sugerem uma psicopatia que nunca somos capazes de perceber. Por fim, composta por Benjamin Wallfisch com sons que lembram os que ele utilizou em “Blade Runner 2049” (seria a cena inicial, e a própria mansão, uma homenagem àquele filme?), a trilha sonora cresce e diminui de maneira a conversar com a narrativa, amplificando o terror físico e isolando ainda mais Cecilia em seu terror psicológico.