Crítica | A Voz Suprema do Blues (Netflix)

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“A Voz Suprema do Blues” é um filme esquisito.

Se passando durante uma tarde em Chicago na década de 1920, acompanhamos Ma Rainey, a Mãe do Blues, e o processo de gravação de alguns de seus maiores hits em companhia de sua banda. Mas além da personalidade difícil e gênio forte da lendária cantora, o grupo tem de lidar com a rebeldia do jovem Levee Green, que discorda artisticamente de Ma, entrando em conflito com todos.

Prestes a ser universalmente reconhecido como o último filme de Chadwick Boseman, o nosso “Pantera Negra”, o filme de George C. Wolfe é o que eu gostaria de ver na maioria das biografias musicais. Ao invés de recontar toda a vida da personagem (que é real, mas cuja história do filme fora baseada em uma peça de August Wilson), o longa retrata apenas um dia, onde podemos descobrir muito mais sobre cada uma daquelas pessoas do que se víssemos uma coletânea de melhores momentos. Com curtos 90 minutos, a intensidade do projeto chega a ser chocante, pois se mergulhar no mundo do Blues do início do século 20 é, inevitavelmente, o mesmo que assistir a uma análise cultural e social do período nos EUA, conhecer de perto as figuras de Ma e Leevee é uma experiência que traz emoções ainda mais conflitantes.

Mas antes de entrar a fundo nos personagens e nas performances de seus intérpretes, gostaria de frisar a palavra que escolhi para definir o filme: esquisito. Justamente por se passar em um curto período de tempo, e denunciando sua origem teatral tanto em diálogos como em forma, o longa lembra muito “O Limite Entre Nós”, também produzido (e dirigido e estrelado) por Denzel Washington a partir de uma peça premiada, mas consegue se fazer mais cinematográfico que aquele graças ao intrigante papel da câmera. Nos imergindo na gravadora, ela passeia pelos ambientes de maneira que os preenche: na grande maioria dos quadros, enquanto um personagem está focado, outros elementos podem ser vistos ao fundo, as vezes parados, as vezes reagindo, o que dá uma sensação de vivacidade ao local. O design de produção, inclusive, merece ser lembrado na temporada de premiações, pois o porão onde a banda ensaia chega a ter seu próprio cheiro, enquanto as poucas tomadas externas apresentam uma bela reconstrução de época.

Fotografado por Tobias A. Schliessler como uma memória calorosa, a paleta de cores quentes ressalta também as emoções em torno das gravações, sendo que, por mais inteligente que seja o roteiro, é a paixão de Ma, e principalmente de Leevee, pela música que conduz a narrativa. Mas ainda assim, não posso dizer que o filme se encontra como tal e, apesar de ser centrado em torno de música, o design de som poderia ser melhor trabalhado, pois jamais senti como se Viola Davis estivesse realmente cantando em suas muitas sequências, o que te deixa preso entre a maior veracidade do teatro e a farsa do cinema, apesar de que a interpretação da atriz, e a própria banda, convencem do virtuosismo e talento deles como músicos.

Estes, por sua vez, merecem destaque por adicionarem camadas a seus personagens secundários: Glynn Turman encarna Toledo como um homem contente com o que alcançou na vida; Colman Domingo transforma Cutler em um homem dedicado à paz, mas devoto demais pela religião; Michael Potts empresta carisma e afeto no olhar para Slow Drag; Jeremy Shamos está divertido com sua submissão à Ma e sua “boa vontade” em se enturmar com os músicos; ao passo que Dusan Brown comove pela gaguez de seu personagem e quando ele consegue, finalmente, completar uma gravação é um momento marcante.

Mas o show literalmente pertence à Viola Davis e Boseman, que já são favoritos a todo e qualquer prêmio. Porém, se a estatura da atriz já a garante como indicada sempre que faz um papel voltado para isso, e se a morte do ator pode soar como o principal motivo de qualquer premiação, este não é o caso, pois apesar de ser lançado visando esta época do ano, “A Voz Suprema do Blues” conta com duas das melhores atuações que assisti nos últimos anos e, agora, falo o porquê.

Comecemos por Viola, que interpreta Ma como uma mulher implacável, difícil de se gostar justamente por não se importar se gostamos dela ou não. Confiante de seu absurdo talento e calejada por uma vida extremamente difícil, a cantora jamais se deixa ser passada para trás, fincando pé no pedestal em que se auto-colocou e se recusando a baixar a cabeça. Viola parece ter ganho peso para o papel (embora o excelente figurino deva ter ajudado), mas muito mais impressionante que isso é seu olhar, que em nada lembra a Rose de “Um Limite Entre Nós”, que lhe rendeu seu primeiro Oscar. E se há uma inconstância nos quadros e na edição, que corta cenas que se sairiam melhor em plano sequência, a forma como a câmera parece ter que se adequar à sua aparência agigantada rima com a forma que os agentes tem de se adequar a suas exigências.

Por sua vez, Boseman parece encolher em diversos momentos, talvez até propositalmente. Um homem inteligente, mas convencido de ser mais do que realmente é, Leevee sabe a hora de recuar - e evidencia isso em um monólogo arrasador que, digo aqui, lhe garantiu o Oscar -, mas não de atacar, sendo constantemente esmagado tanto pela sociedade racista a sua volta, como pelos próprios companheiros, como pelas paredes apertadas de uma sala, como pela indústria musical da época. O encarnando como um homem apaixonado, Boseman desaparece sob essa paixão, dando lugar apenas à Leevee. Seus trejeitos em nada lembram a grandeza elegante de T’Challa, ou qualquer das figuras reais que o ator interpretou anteriormente (embora James Brown venha a mente), e a forma como ele segura uma lágrima no já falado monólogo mostra como, apesar de jamais ter perdoado, aprendeu a conviver com a dor e usá-la de motivação. Trágico e, desconfio, fadado à destruição, Leevee apenas aumenta o legado de Boseman, um ator que se foi muito cedo e que em uma ironia do destino encarnou um tipo muito menos glorioso que o de costume em seu último papel, e justamente este tipo deve lhe dar o reconhecimento que não recebeu em vida.

Incerto entre a linguagem cinematográfica e teatral, e demorando uns bons 20 minutos para te deixar investido, “A Voz Suprema do Blues” é um bom filme sobre a indústria musical e o racismo, seja em 1920 ou 2020. No entanto, é como estudo de dois personagens tão fascinantes, e proporcionado o melhor de um ator magnífico que jamais veremos novamente, que o filme revela sua verdadeira força.

Descanse em paz, Rei.

8

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