Crítica | Millenium: Os Homens Que Não Amavam as Mulheres

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Estamos caminhando para a terceira interpretação de Lisbeth Salander no cinema. Isso era inevitável desde que Stieg Larsson a criou.

"Millenium: Os Homens Que Não Amavam as Mulheres", ou seu título original "A Garota Com a Tatuagem de Dragão", é um filme de 2011 baseado no primeiro livro da trilogia escrita pelo falecido autor sueco Stieg Larsson. Aqui nos é mostrada uma das histórias mais brutais, sombrias e frias já escritas, na qual o jornalista Mikael Blomkvist é convidado a tentar desvendar um assassinato que ocorrera há 40 anos, enquanto se envolve em escândalos e brigas familiares que colocam em risco sua própria vida.

A saga “Millenium” já não era novidade para o público quando a versão norte-americana saiu. A série de livros fora lançada postumamente, sendo que Larsson, que havia planejado dez livros para a série, falecera em 2004 vítima de um ataque cardíaco logo após submeter a trilogia para sua editora. Desde então, três filmes suecos, duas sequências escritas por outro autor, esta e uma nova adaptação, prestes a ser lançada, entraram para o universo da série que começa a entrar em território perigoso de exploração de dinheiro.

Este é o tipo de filme que, após você assistir sob a direção de David Fincher, fica difícil se empolgar com qualquer outro por trás das câmeras.

É difícil imaginar outro nome para dirigir uma história que, em sua essência, é um mistério de Agatha Christie adaptada para o século 21. Fincher faz, desde os anos 90, um caso para ser o melhor diretor de suspenses desde Alfred Hitchcock e a saga “Millenium” é um prato cheio para ele. O mistério pode fazer a história andar, mas é o desenvolvimento de personagem que a torna tão singular e ele entende e tira o melhor de tudo isso.

É incrível como as mesmas tendências - que ele utiliza desde os já clássicos “Seven” e “Clube da Luta” e que foram parte fundamental em tornar “Garota Exemplar”, “Zodíaco” e “A Rede Social” (todos com textos linkados) em três dos filmes mais aclamados do século 21 - funcionam filme após filme. Os movimentos sutis da câmera, que praticamente imita cada pequeno movimento de seus personagens, é um passo além do voyeurismo de Hitchcock, onde a sincronia entre atenção e movimento é tamanha que não é como se os observássemos, mas como se nosso olhar fosse entrelaçado com tudo que fazem. Isso, além de te fisgar, tem papel fundamental na imersão daquele mundo e vale ressaltar que, fora a fictícia cidade de Hedestad, todos os acontecimentos se passam em localizações reais na Suécia, transformada pelo design de produção em um belo, mas sufocante lugar que, realçado pela cinematografia, parece encurralar não apenas seus personagens, mas os muitos segredos que escondem.

Porém, se há algo de sinistro em uma grande cidade como Estocolmo - que poderia muito bem ser São Paulo, ou Nova York e manter o mesmo propósito -, a forma como a pequena Hedestad é representada transforma o já intrigante mistério de quarto fechado e a apavorante atmosfera presente na família Vanger em algo quase mítico. Enquanto o frio e a neve do inverno do país já parecem implacáveis por si só, a cinematografia baseada em cores frias e a habilidade de Fincher em aliar a música à enquadramentos sugestivos transformam ambientes aparentemente aconchegantes em lugares hostis, com destaque para a cabana de Mikael que, no início da projeção, soa como o único lugar propriamente seguro na ilha apenas para parecer uma armadilha em um plano onde o jornalista olha para trás, para conferir se não há, de fato, ninguém ali.

É uma imersão essencial para contar uma história que, na verdade, funciona como uma alegoria para toda a violência sofrida por mulheres na Suécia e em qualquer lugar do mundo.

O roteiro, do ocasionalmente brilhante Steven Zaillian, consegue trazer os principais elementos do livro de Larsson e a forma como a história é vivida e contada por seus personagens tem todo o jeito de um clássico do suspense. Quando Christopher Plummer narra os acontecimentos do crime, Fincher faz uso eficaz de flashbacks e da trilha sonora - horas clássica, horas pulsante, propositalmente harmônica, mas distorcida em diversos momentos para alinhar aos temas que acompanha - para impedir que a exposição, necessária nesta convenção do gênero, se sobressaia à inquestionavelmente interessante história visualizada por Larsson. E essa força, traduzida perfeitamente para o longa, torna as duas horas e trinta minutos em uma aventura desconfortável, mas perigosamente magnética.

Parece fácil imaginar que, após a boa versão Sueca, o trabalho tenha sido facilitado, mas isso é uma inverdade. De forma alguma é uma versão super comercializável ou que apenas reconte a história, mas sim uma outra visão acerca da mesma, fazendo o que todo remake deveria fazer: adicionar novas camadas à um universo já existente no cinema.

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No entanto, "Millenium" se destaca de verdade pois, ao centro de tudo, está uma das personagens mais interessantes do século 21 e digo isso sem exagerar. Lisbeth Salander é um imã que, apesar de fazer tudo para passar despercebida e repelir todos os olhares - e ser mais frio que a geladeira no qual se encontra grudada (perdoem a piada) -, se mostra mais enigmática e irresistível a cada novo insight que temos de sua complicada personalidade. A composição de Rooney Mara é tanto, ou ainda mais intensa que a de Noomi Rapace, sendo que os piercings e o visual punk são apenas o externo, pois desde a forma como caminha à como se protege em cantos onde consegue ter uma visão ampla do que está a seu redor, a atriz consegue conferir àquela jovem mulher todo o sofrimento e desconfiança que passou a ter por conta dele. Mas o mais impressionante é como reprime suas emoções perante situações que fariam qualquer ser humano comum entrar em colapso. Você sente por ela e, mesmo sem saber de sua origem, entende como seu passado não deve ter sido mais iluminado do que os dias escuros que vive hoje. Por isso, quando ela se vinga de Bjurman a extrema violência presente na cena vêm de forma quase que gratificante, por mais que irá, com certeza, fazer diversos espectadores cobrirem os olhos.

Parece impossível, mas a atuação magistral de Mara não ofusca, de forma alguma, sua química com Daniel Craig e isso se dá pela dedicação do James Bond ao papel. Ele compõe Mikael como um homem amoroso e acalorado, mesmo que tente manter uma postura segura e desprendida para alguém de sua idade, traço que também funciona graças à seu charme natural. O laço de ambos é inusitado, mas consegue unir dois personagens distintos de forma mais do que convincente.

Mas não foi só com suas estrelas que o casting foi feito com perfeição. Stellan Skarsgard é envolvente e misterioso como Martin; Robin Wright eficaz e sedutora como Erika; Christopher Plummer charmoso e persuasivo como Henrik e Yorik Van Wageningem tem em Nills Bjurman o personagem mais odioso que consigo me lembrar. Fincher sabe dosar as aparições de cada um, sempre sugerindo caminhos e resoluções diversas sem entregar demais.

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E se esta obra falha em alcançar o elevado patamar estabelecido pelo diretor, é apenas por conta do final que, mesmo longe de decepcionar, não conclui a obra com a mesma catarse que a construção de Fincher parecia sugerir. Não chega a ser anti-climático, mas este final - que já difere um tanto do do livro, mas sem alterar seu ponto principal - talvez se beneficiaria de uma ambiguidade um pouco maior, se entregando a uma resolução que não deixa pontas soltas. Além disso, os minutos finais são deixados nas mãos de Lisbeth para uma sequência que, apesar de bem construída e de evocar nela, e não em Craig, o Agente 007, esticam o filme para além de seu clímax e soam desnecessários agora que sabemos que não haverá continuação.

Por fim, o diretor mais capacitado para fazer um bom suspense desde Alfred Hitchcock trouxe com maestria para o cinema uma das melhores histórias do gênero nos últimos anos. "Millenium" é mais um exemplo da afinidade de Fincher com thrillers e talvez seu filme mais desafiador desde “Clube da Luta”, justamente por extrair todos os polêmicos temas presentes na obra de Larsson.

E, é claro, a cena final é um presente e um lembrete: anos de dor não podem ser esquecidos tão facilmente. Este filme também não.

9.3

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