Crítica 2 | Zodíaco
Por que re-assistimos a filmes?
De certa maneira, um filme é como uma experiência que, por mais que relembrada por fotos e vídeos, jamais poderá ser sentida da mesma forma como quando aconteceu da primeira vez. Isso se torna ainda mais verdade quando falamos de filmes enigmáticos e metafóricos que precisam ter seu próprio significado desvendado, e também de suspenses centrados em torno de mistérios e reviravoltas, assim como este “Zodíaco”, baseado nos eventos reais envolvendo o assassino em série que nunca fora pego.
Adaptação do livro de mesmo nome de Robert Graysmith, assistimos aqui aos esforços de policiais, jornalistas e do cartunista Graysmith para encontrar o culpado por uma série de assassinatos que se iniciou em 1969 e se estendeu por quase uma década. Caso um serial killer por si só não seja o suficiente, as cartas que o mesmo enviou à polícia e as ligações que fez às casas dos envolvidos no caso deve te fazer sentir um frio na espinha justamente por mostrar que isso não é - ou foi - coisa de filme.
Mas de maneira alguma o objetivo do longa é capitalizar em cima do famoso caso, pois a abordagem de David Fincher ao sóbrio roteiro de James Vanderbilt é de longe a mais burocrática de sua carreira o que, também de forma alguma, quer dizer que não seja tão impressionante com qualquer coisa que ele tenha feito. A dupla passou por um longo processo de pesquisa para conceber o projeto, entrevistando envolvidos e contando com o auxílio de Graysmith e de Dave Toschi, detetive que inspirou personagens de filmes (“Bullit”, um deles) e era um dos encarregados do caso (aqui, interpretado por Mark Ruffalo). O objetivo era trazer um filme baseado em fatos e separar o misticismo criado em torno da figura do assassino e sua desconhecida identidade. Não, ele não era um ser fantasma ou um gênio do mal, mas sim um homem que provavelmente cometeu diversos erros em seus crimes e que foram, pouco a pouco, sendo perdidos entre a falta de fax em uma delegacia e a demora para se conferir uma digital. Inclusive, em diversos momentos Fincher pisca para a audiência como que dizendo que, se cometidos hoje, os crimes seriam logo resolvidos.
Cientes do lento e dialogado filme que tinham em mãos, a dupla opta por mostrar os assassinatos cedo, atraindo atenção imediata e desviando o público ao utilizar atores e vozes diferentes em cada cena - naquela realizada em um lago é possível ouvir a voz do intérprete do principal suspeito. O que permite que passem o resto do processo dando ênfase ao próprio processo, pois, de acordo com Fincher, dar ao filme o ponto de vista do assassino não é algo que eles queriam. E apesar de não nos fazer gostar propriamente de qualquer dos personagens, seu típico uso de uma câmera que os acompanha da maneira mais sincronizada impossível, de uma caminhada a um simples aceno, cria uma magia subconsciente que nos obriga a acompanhá-los e não apenas torcer, mas sentir tudo que sentem.
Também perfeito em recriar os anos 60 com o auxílio de efeitos visuais - poucas imagens da cidade que você vê são “reais” - perceptível apenas para aqueles que sabem que eles estão ali, Fincher está obcecado, como sempre, pelos detalhes: uma sirene portátil, o brilho difuso das luzes, os carros nas ruas, os móveis, os jornais, os figurinos. Também hábil em mostrar a evolução do mundo de maneira sútil - não tanto na tomada do prédio sendo construído -, Fincher torna o filme ainda mais vivo e real, optando por situar perfeitamente datas e lugares, diferentemente de sua Magnum Opus, “Seven”, onde a cidade poderia ser qualquer capital superpopulada e, por isso, impessoal. Aqui a chuva, o sangue, o suor, os personagens, tudo é real e mundano, o que se torna um dissonância por sabermos que nada é de fato real e sim efeitos de um computador. “Usar tinta para o sangue resultaria em termos que lavar as roupas depois”, ele disse, e para alguém que exige até 90 tomadas de uma mesma cena, realmente não seria nada prático.
Tomadas em excesso, essas, que enfureceram algumas de suas estrelas, mas duvido que ele se importe, pois se aprendeu tanto com o único diretor de suspense que é superior a ele próprio (sim, Hitchcock, eu disse), uma relação conturbada com os atores tem que vir de brinde. Porém, assim como Hitchcock, Fincher consegue extrair tudo que quer de seu elenco, até a última gota de seu talento para que desapareçam completamente e o que fique sejam os personagens que dão vida. Downey Jr. jamais deixará de ser Tony Stark, mesmo antes de o ser-lo, mas sua arrogância aqui é perfeitamente compensada pela decadência que o toma por completo e que parece atingir a todos envolvidos no caso. Flutuando entre personagens supostamente principais, vamos dele para Ruffalo, que genialmente consegue deixar sua voz ainda mais inofensiva em timbre, mas explosiva como nunca em tom, e então para o verdadeiro protagonista, o Robert Graysmith de Jake Gyllenhaal.
Encolhido e basicamente invisível perante a equipe do jornal - essa sendo outra “piada” embutida de Fincher -, Gyllenhaal dá vida a um bom moço que parece aflorar em um homem devido à sua relação obsessiva com o caso. Desde o primeiro encontro com a mulher que casaria, até seu divórcio, todos os episódios são marcados por sua incessante busca.
Busca esta que o leva à resposta da pergunta que fiz no início deste texto, pois se “Zodíaco” parece lento demais para o espectador casual, quando ele finalmente te pega é impossível de escapar da ansiedade e apreensão que se misturam a obsessão de Graysmith, tornando um telefonema ameaçador em um momento antecipado e bem vindo, justamente por parecer estarmos, ao menos, um pouco mais próximos da verdade. O que culmina naquela que julgo ser uma das, se não a melhor cena da carreira de David Fincher, onde ele nos coloca o mais próximo possível de descobrir qualquer coisa apenas para constatarmos que, assim como na vida real, ali não haveria qualquer revelação. Toda vez que a assisto, o medo e a apreensão são os mesmos, como se o final pudesse ser diferente, como se pudesse descobrir algo que ninguém mais poderia, exatamente como Graysmith se sentiu naquele momento.
Na cena, e adoraria destrincha-la, mas este vídeo já o faz segundo a segundo, vemos o ápice de sua obsessão, ecoando uma frase que outro dos vilões de Fincher falaria anos depois: “o medo da morte é menor do que o medo de ser mal educado”, ou do que a curiosidade, gostaria de adicionar. Apavorado com o que acabara descobrir, acoado no centro da tela com paredes o fechando e se questionando a cada mínimo momento se não deveria fugir, ele deixa tudo de lado em busca de ir um pouco mais além e satisfazer aquilo que está presente em todos os filmes do diretor. No Fincherverse, a emoção vai sempre falar mais alto do que a razão, seja para quem comete os crimes, como para quem decide deixar a vida toda de lado para desvendá-los.