Beyond | Um Casal Exemplar

critica garota exemplar

Eu adoro começar meus textos com piadas, então lá vai: Esse é um filme exemplar.

Conversando com um amigo sobre o filme, após o re-assistir pela quarta ou quinta vez, ele me disse que achou o roteiro “previsível”, que havia desvendado o mistério logo no começo. Acho curioso, fascinante na verdade, como muitos espectadores travam um duelo intelectual com os filmes: "Se eu descobri o que acontece, é porque é ruim” “Se eu não entendi nada, é porque é ruim”. O problema dessas presunções (que são nada mais do que isso, presunções) é que elas dificilmente acabarão bem porque, na maioria das vezes, dizem respeito à história, e não à narrativa.

Já dizia Roger Ebert, raramente importa sobre o que um filme é, mas como ele é sobre o que é, e “Garota Exemplar” é, repetindo o trocadilho de antes, um filme tecnicamente exemplar sobre temas desafiadores, que enganam você, que acha que desvendou o mistério, quando o longa nunca se preocupou em escondê-los de verdade.

Iniciando com um plano que já considero icônico, Amy levanta sua cabeça para olhar para o marido Nick, que na cena serve como nossos olhos - ou seja, Amy olha diretamente para a câmera (e para nós, talvez?). Mas o que poderia ser o início de um drama matrimonial recebe um toque que apenas uma obra que atrairia David Fincher poderia produzir: na voz de Ben Affleck, ouvimos Nick falando como gostaria de abrir a linda cabeça da esposa para obter respostas.

(O quão perturbado eu sou por amar incondicionalmente este começo?)

Dirigido por David Fincher (meu diretor favorito!) a partir de um roteiro adaptado pela própria autora do livro, Gillian Flynn, “Garota Exemplar” é, em suma, sobre o desaparecimento da bem sucedida autora infantil, Amy, e como seu marido, Nick, se torna o principal suspeito. Mas é, na verdade, sobre o casamento perfeito, e então destrutivo e então perfeito novamente que os dois dividem, inclusive, eu poderia defender que toda a premissa serve apenas como um MacGuffin (dispositivo para fazer o roteiro andar) gigante e que o filme funcionaria caso fosse apenas uma discussão de duas horas entre o casal, mas não o farei. Hoje.

Nesta análise, e como é de praxe de nossos artigos Beyond, comentarei detalhes específicos da trama, indo a fundo nos elementos que tornam este um dos melhores suspenses do século 21, mesmo que não seja, literalmente, um suspense. Caso ainda não o tenha assistido, aconselho fazer antes de ler o texto.

Avisos dados, vamos lá:


O gênero

Em uma de suas frases que considero mais brilhantes e reveladoras sobre a natureza da arte que cria, Fincher diz que acredita que todas as pessoas são pervertidas, e apesar de que o que vemos aqui não se compare ao que fez “Millenium” e “Zodíaco”, por exemplo, é possível perceber a perversão do cineasta, que constantemente brinca com o que achamos que estamos assistindo. Se apresentando como um suspense logo no início, “Garota Exemplar” praticamente chuta a estrutura de atos e transforma seus 150 minutos em uma aventura compacta e complexa sobre uma relação tóxica em todos os sentidos, logo derrubando o mistério por terra e abraçando o segundo gênero favorito do diretor: a sátira.

Não que isso seja “fácil” de captar, pois ao assistir o filme pela primeira vez é bem possível que, com a estranheza de vários acontecimentos aliados à natureza macabra da relação entre Amy e Nick, espectadores menos atenciosos deixem o choque provocado por estes momentos desviar do fato de que a grande maioria deles é dotado de um senso de humor extremamente ácido e irônico - outra característica atrelada ao trabalho de Fincher. Que, aqui, se beneficia de ser a própria Flynn que adapta o material que criou, com os dois trabalhando em união para que todos os pensamentos e devaneios dos personagens pudessem ser sentidos sem serem verbalizados e se engana quem acha que esta, ou qualquer outra (boa) adaptação, perde em relação ao material fonte por ter menos palavras sendo ditas.

Pois se em um livro podemos apenas imaginar expressões e tons de vozes, em um filme de David Fincher temos inúmeras tomadas (uma média de 50 por cena aqui) que procuram captar estes elementos deixados para trás no roteiro, mas que seus interpretes se encarregam de trazer consigo. E são esses elementos que ajudam a tornear o foco narrativo de “Garota Exemplar”, desde uma piada imoral, à um sorriso falsamente afetuoso, aos recursos técnicos que tornam cenas, em tese, aterrorizantes, em momentos que me fazem gargalhar só de lembrar.

De novo, não que seja “fácil” entender, ou sequer apreciar este senso de humor, que traz um casal que se odeia tomando banho juntos após ela quase prender ele e voltar ensanguentada para casa após matar outra pessoa. Logo, minha maior constatação é que além de ser uma sátira sobre o casamento em geral, “Garota Exemplar” também ironiza outros conceitos enraizados não apenas na nossa sociedade (como a mídia, por exemplo), mas no próprio gênero do suspense, que constantemente traz homens como os criminosos e mulheres como as vítimas.

OS gêneros

Uma das principais críticas tanto ao livro como à sua adaptação reside na forma como este retrata as mulheres e a forma como são tratadas pela sociedade. Flynn recebeu diversas mensagens agressivas, até mesmo à chamando de misógina, e que a fizeram questionar o próprio trabalho. Porém, em uma entrevista ela diz ter passado por cima disso e que agora se sentia confortável com o que havia escrito. De acordo com Flynn, seu objetivo era reverter estereótipos, pois para ela o Feminismo e a liberdade de expressão artística feminina não querem dizer que todas as mulheres são, ou tem de ser, boas.

Neste texto em específico, a autora (do texto, no caso) fala sobre como Amy, ao perder as complexidades do livro se transforma em uma mera louca, mas preciso discordar veementemente dessa posição. Como falei antes, não é porque suas complexidades e pensamentos não são verbalizados (ao menos não tanto quanto no livro) que eles não estão ali. Isso seria o equivalente a chamar a performance de Rosamund Pike de rasa e ignorar o mundo de emoções e sentimentos conflitantes pelos quais ela passa durante toda a projeção.

Claramente “Garota Exemplar” trava uma espécie de guerra dos sexos, traçando a dinâmica de um casal onde a mulher é mais bem sucedida para, então, os papéis serem revertidos e esta se ver sem propósito. Mas podemos ler esta guerra com a mesma ironia comentada acima ao perceber que os problemas sofridos por Amy e Nick devem ser contextualizados quando percebemos que estes tem centenas de milhares de dólares no banco e se apresentam como um casal perfeito (não que isso diminua suas dores, pois não diminui). Porém, novamente, o filme vai além da perfeição e mostra as rugas que se escondem por trás das máscaras que utilizam em público e aí temos:

A farsa

Mas vou deixá-la por último, vamos ver agora:

O filme

Apesar de acreditar que a maior força de “Garota Exemplar” resida em seu aspecto satírico e como este se esconde por trás do suspense, tentar desvendar o que ocorreu e tentar juntar os pontos continua sendo uma tarefa deliciosa - sinto calafrios toda vez que (re)acompanho seu desenrolar. Mas Fincher jamais deixa a tensão subir mais do que o necessário, empregando aqui todas as suas conhecidas técnicas, que jamais soam repetitivas graças à habilidade do diretor em manusear seus filmes da forma que bem entende conseguindo, com isso, guiar nosso olhar para onde quer que olhemos.

Iniciando o filme com uma sequência que estabelece o começo da relação de Amy e Nick como algo caloroso (reforçado pela fotografia com cores quentes), mas que na primeira revisita já deve lhe soar como falso e forçado (se não, assista de novo!), Fincher logo contrapõe ao filmar as cenas no presente de maneira mundana, estéril, trazendo à tona o estado miserável de espirito dos dois. Ele segue seus personagens com a câmera da maneira sincronizada que conhecemos e abusa de movimentos de câmera sutis que retratam o tédio que se tornou a vida do casal, ao passo que sumários de cenas trazem energia e um uso impecável de cortes, contrapondo movimentos e dando sequência a outros de ângulos e pontos de vista distintos, justamente por estes representarem a mente afiada de Amy. A edição de Kirk Baxter, diga-se, é responsável por momentos brilhantes, como aquele que, como apontado por Pablo Villaça, vai de um beijo do casal à Nick tendo a boca vasculhada por um teste de DNA. Também, a própria forma como as jornadas dos dois se entrelaçam: usando fades que mostram o vazio entre eles durante o meio da projeção e, ao fim, transições diretas entre ambos que reforçam como voltam a se aproximar - mesmo que jamais seja por afeto ou amor.

O design de produção de Donald Graham Burt também se mostra essencial ao transformar a casa dos dois em um ambiente espaçoso e quase estéril, daqueles que vemos em propagandas da Polishop, ao passo que os locais onde Amy deixa suas pistas soam como o escape de Nick, onde pode mergulhar em seus pensamentos e, por isso, surgem pequenos perto da bagunça e excesso de coisas, desde jogos, à livros, à videogames. Além destes, o hotel onde Amy se hospeda tem suas cores lavadas e uma fotografia levemente granulada, contrastando com o antigo modo de vida ideal que vivia, enquanto a casa no lago de Desi surge com uma meia iluminação que chega a esconder a cara do sujeito em sombras, como que denunciando suas intenções.

Por falar nela, a fotografia de Jeff Cronenweth segue a temática de outros trabalhos do diretor, com destaque para uma cena no final onde Amy se encontra em um cômodo banhado de luzes quentes, enquanto Nick vem de outro mergulhado no azul, refletindo assim as emoções dos dois. Por fim, a trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross combina elementos clássicos com distorções eletrônicas que surgem como a transição natural de Amy para uma partitura, mas mais do que isso, auxiliam no ritmo constante da narrativa que caminha uma linha tênue entre o suspense a comédia, evidenciando a maneira delicada como os temas são desenvolvidos. Em seu melhor momento, a trilha desenrola quase que naturalmente para algo vindo de um conto de fadas, ao passo que a câmera sobe enquanto vemos Nick segurando Amy nos braços mais uma vez. Uma cena absolutamente hilária e que poderia, muito bem, ser o final do longa.

*(Vale lembrar que todos os nomes citados acima são colaboradores frequentes de Fincher.)*

Mas apenas para conectar os sub-tópicos deste texto, vale comentar como tal cena evidencia ela:

A farsa, de novo

Construído minuciosamente para que pouco importe se você “desvendou” o mistério elaborado por Flynn, basta re-assistir ao filme para perceber que a narração em off de Amy, graças ao trabalho de voz magistral de Rosamund Pike (assistir a este, ou qualquer filme, dublado deveria ser crime inafiançável), claramente denuncia não apenas a condição atual da personagem, mas que tudo não passa de uma grande farsa.

Perceba, quando fingindo, a atriz emprega uma voz polida e quase tola de uma dona de casa entediada com a vida e submissa ao marido que decidiu se rebelar. Porém, quando se deixa mostrar de verdade, seu olhar assume o da psicopata fria que é e sua voz não apenas se torna mais firme, mas a todo momento sugere que pode fazer qualquer coisa para obter o que deseja. E Pike, indicada ao Oscar por seu trabalho aqui, dá vida a uma das criaturas mais aterrorizantes, e fascinantes, que já vi em qualquer filme, alterando a forma de andar, se portar, olhar e reagir de acordo com a personagem que interpreta no momento. Mas mais sobre isso adiante.

A contrapondo está Nick, que parece uma caricatura do próprio Ben Affleck, um ator conhecido por ser um canastrão da vida real. Fracassado, desinteressante e conformado com o atual estado, é interessante constatar como o ator parece cair a cada nova cena, como se a exaustão o atingisse ao ponto que, em duas aparições tardias, ele comece suas cenas dormindo. Claramente descuidado em excesso ao lidar com o aspecto midiático do desaparecimento da esposa (o que reflete na forma como lidava com seu casamento), Nick é auxiliado pela irmã (Carrie Coon) com quem nutre uma relação afetuosa e companheira, e pelo advogado (Tyler Perry, surpreendente mesmo depois de tantas revisitas), que se posiciona como único ser em tela capaz de “enfrentar” a inteligência de Amy - e que nunca haja embate verdadeiro é uma das minhas coisas favoritas sobre o longa. Pois apesar de ser óbvio que Neil Patrick Harris não seria escalado a toa, a verdade é que qualquer gran finale poderia fazer jus à um filme medíocre, ou apenas contente em ser o que é, mas “Garota Exemplar” jamais se contenta com nada. Por isso, a cena de seu assassinato se torna apenas, vejam só, um MacGuffin.

Tendo na mídia o terceiro integrante deste problemático triangulo amoroso, o longa mostra como a farsa não apenas é refarseada (não, essa palavra não existe), mas como essa mentira criada em cima de outra mentira se torna convincente o suficiente para levar uma população a acreditar que um homem deva ser executado. O que me leva a outras críticas direcionadas ao trabalho de Flynn, que consistem na comoção geral em torno dos abusos sofridos por Amy, sendo que poucas mulheres são ouvidas de verdade (como lembra o recente e, de certa forma, similar, “Promising Young Woman”). Mas vale lembrar que além de ser a autora de uma personagem intitulada The Amazing Amy, a personagem (e sua intérprete, claro) é branca e rica, o que faz com que a “dor” sentida pelas massas, e provocada pela mídia, seja o suficiente para cobrir o fato de que, na verdade, pouco se importam com os casos que acontecem todos os dias. Assim, repito, absolutamente tudo e todos em “Garota Exemplar” são farsantes.

Acredito que, para desvendar o filme de verdade, é preciso fazer a seguinte pergunta da qual, sadicamente, jamais obtemos uma resposta concreta. Afinal, o que os dois veem um no outro? Fincher até tenta nos mostrar o que os fez se envolverem, mas quando percebemos que é tudo do ponto de vista da narradora, e ela jamais se mostra confiável, e que o próprio Nick está longe de ser perfeito, fica óbvio que a falta de química e veracidade nas cenas iniciais é mais do que proposital - pra enganar bobo, eu diria. A minha resposta, ao menos, está no momento onde Amy decide retornar, quando vê Nick na TV e percebe coisas que apenas ela poderia: a gravata que comprou, o gesto que apenas eles conheciam, ele falar justamente as coisas que ela queria ouvir. Nesse momento, percebo que o filme é, também, um delicado estudo de personagem, pois descobrimos mais naquela reação, naturalmente surpresa enquanto abocanha um sorvete, do que em qualquer diálogo ao longo da projeção. Amy sabia que ele estava mentindo, mas o fato de ele saber o que mexeria com ela foi o suficiente para que percebesse algo que acabei constatando…

Dentro de suas respectivas loucuras e do ódio que Nick sente por Amy (pois esta não odeia ninguém, ela quer apenas ser entretida), a verdade é que ambos jamais se contentariam com alguém diferente. Ela extrai o melhor dele? Não. Mas apenas um ser tão… bruto disfarçado de culto como Nick seria capaz de suportar o terror psicológico pelo qual seu casamento o faz passar, e quando este esbraveja e fala sobre como os dois querem apenas destruir um ao outro ela responde com minha frase favorita do filme (seguida de sua resposta genial ao pedido de Nick por um teste de paternidade): isso é casamento.

Terminando com um plano final que já considero icônico (deja vu) e que faz um pequeno milagre ao nos fazer sentir da mesma maneira no início e final da projeção (curiosos, confusos, alienados!), “Garota Exemplar” é brilhante por nos fazer gostar de seres humanos terríveis. Inclusive, tudo que Amy quer é que prestem atenção nela e não na perfeita personagem que criou, mesmo que, para isso, precise criar outra personagem ainda melhor. Por que Nick não foge? Bem, Martin respondeu isso em “Millennium”, e o famoso ditado se prova mais do que verdadeiro: a curiosidade matou o morcego.

Afinal, o filme começa e termina com ele em busca de respostas.

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