Crítica | Promising Young Woman
Fazia tempo que não me sentia tão desafiado por um filme como por este (ou esta) “Promising Young Woman”.
Estreia de Emerald Fennell na direção, o longa é, indiscutivelmente, um dos mais polarizadores e ousados de 2020, tratando assuntos tão sérios como o estupro e o assédio sexual com uma irreverência que beira a irresponsabilidade, enquanto emprega escolhas estilosas e uma energia constante a uma narrativa que poderia muito bem abraçar a melancolia. Não tem jeito, é esse tipo de filme que eu quero assistir.
Se situando em uma cidade qualquer dos Estados Unidos, mas que poderia ser até no Brasil, o longa acompanha Cassie, uma ex-estudante de medicina que, traumatizada por algo que aconteceu à melhor amiga no passado, decidiu largar tudo e ainda não sabe o que fazer da própria vida, exceto aterrorizar homens que tentam abusar dela - falsamente bêbada - em boates pela cidade.
Escrito e dirigido por Fennell, confesso que fiquei surpreso quando soube que ela teve a ideia para o roteiro a partir de conversas com amigas, e não por experiencias inteiramente próprias. Mais surpreso ainda quando descobri que a cineasta, que tem uma carreira como atriz e roteirista para a TV de mais de uma década, tem origens “nobres” pois, apesar de não dialogar diretamente com a parte mais pobre da população, “Promised Young Woman” é um filme extremamente consciente do mundo a sua volta, mesmo que o apresente na forma de uma realidade quase hiper-estilizada.
Emprestando tendencias de vários diretores que tornam a obra mais rica, Fennel constrói o tipo de filme que, julgo, Quentin Tarantino adoraria: copiando de vários lugares mas sendo deliciosamente original. Misturando e sobrepondo gêneros por praticamente toda a projeção, se os dez minutos iniciais sugerem quase um terror que flerta com a comédia ácida (reparem no uso de vermelho nas cenas da boate), boa parte do segundo ato é dedicada à uma comédia-romântica surpreendentemente eficaz (o verde da calma aqui toma conta), enquanto o terceiro se torna em um suspense aterrorizante (as cores se tornam mais escuras, o roxo entra em evidência). Mas não que a estrutura do filme seja regrada, inclusive a forma como a narrativa é conduzida deve gerar estranheza no público e me levou a questionar em certo momento o que era que eu estava assistindo.
Mas se um cineasta inferior pudesse perder a ideia de mão, Fennel utiliza essa estranheza em prol da narrativa, seja com uma constante quebra de expectativa e uma quantidade considerável de surpresas e reviravoltas, ou com tomadas que, como disse antes, emprestam de outros diretores. A dinâmica de Cassie com a família me lembrou a esterilidade de Kubrick, o desconforto provocado por Yorgos Lanthimos, e até elementos dos recentes “Estou Pensando Em Acabar Com Tudo” e “Corra!”. Detalhe, ela me fez lembrar destes outros longas graças à tomadas onde Cassie se senta ao centro e abaixo do quadro, com a parede crescendo vazia acima dela, como no poster do filme de Kaufman. Além disso, é impossível não notar uma clara influência de David Fincher, tanto nos acontecimentos do terceiro ato que remetem diretamente à “Millennium”, quanto à própria natureza de Cassie, interpretada por Carrey Mulligan como uma das poucas personagens que já vi que julgo ser capaz de ficar frente a frente com a Amy de “Garota Exemplar” e não se intimidar, além de dividir com esta o metodismo e o perfeccionismo que as tornam virtualmente invencíveis e absolutamente fascinantes.
Empregando um ritmo que poderia ser chamado de frenético, mesmo sem criar sequer uma cena de ação, toda a energia trazida por Fennel vem por meio da tensão provocada por diálogos, desde o desconforto de Cassie perante uma investida infeliz de um pretendente que julgava ser diferente dos outros, ao medo e aflição que ela provoca em outros personagens sem nunca elevar o tom de voz. A performance de Carey Mulligan, diga-se, a comprova como um dos maiores talentos de sua geração e é inconcebível que a frágil e doce Irene de “Drive”, dez anos atrás, tenha se tornado aqui em uma figura ainda mais implacável que o protagonista daquele filme - do qual este também pode se dizer influenciado no quesito hiper-realidade.
Hiper-realidade, esta, que é impulsionada pela fotografia vibrante de Benjamin Kračun que se utiliza das lentes anamórficas para distorcer o mundo ao redor de Cassie, agindo como suspensão ainda maior da realidade. Enquanto a trilha sonora, comandada por Anthony Willis, consegue algo raro: utilizar músicas Pop como elementos que ajudam a contar a história sem soar um recurso preguiçoso e obviamente evocativo, seja em versões modificadas (como “Toxic” de Britney Spears), como quando dois personagens cantam uma música de Paris Hilton em meio a uma farmácia. Além, é claro, da escolha de uma enfadonha música clássica em um momento chave no final do longa que, com o silêncio, jamais comunicaria o que a diretora queria.
E embora eu vá dedicar toda a segunda metade deste texto para falar sobre o filme sem spoilers, caso você ainda não o tenha assistido, vale mencionar que não é apenas Mulligan que está ótima, mas quero discutir os outros personagens na sessão com spoilers, onde também justifico o motivo de não o considerar um dos melhores irrefutáveis de 2020.
Antes, aqui a nota:
8.3
Agora vá assistir ao filme, pegar um lanche e volte aqui para brigarmos!
Iniciando o filme com uma cena que remete, olhem só, à dança de “Animais Noturnos”, mas substituindo as mulheres peladas por homens vestidos, fazendo danças embaraçosas que por si só já denotam o desconforto que qualquer mulher deve ter (digo deve, pois não as sou) em um ambiente daqueles, Fennel de cara nos entrega um diálogo entre três amigos que analisam Cassie, aparentemente alcoolizada, à distância. A declarando uma presa fácil, dois deles cogitam levá-la para casa, mas aparentemente é o bom rapaz do grupo que se adianta, talvez, julgamos, para ajudá-la. Não. Quando a leva para casa, suas intenções são as mesmas dos outros dois, e são respondidas pelo olhar macabro de Cassie que, cortando para uma cena onde a mesma caminha com manchas de sangue (ou na verdade o recheio de um doce de frutas vermelhas) no braço e na roupa, eu achava ter matado o rapaz. Ali, eu acreditava estar assistindo à um filme de uma serial killer e estava muito, muito animado.
Mas logo descobrimos, com sobras de diálogos - o filme é pouco expositivo, outra qualidade rara -, que ela apenas aterroriza estes homens. Se tais encontros surtem efeito é difícil dizer, pois um dos pontos de maior discussão do longa é se a forma como este trata seus assuntos é responsável. Inclusive, o próprio tende a contradizer as ações da protagonista, mas, isto, mais a frente.
Extremamente hábil em nos fazer sentir empatia pela falecida Nina, reparem como nem ao menos uma atriz fora escalada para vivê-la em fotos, ou flashbacks, recursos óbvios e fajutos demais para um filme, com dito na sessão sem spoilers, hiper-realista. Ainda assim, vemos a jovem por Cassie, e considero brilhante os momentos onde esta senta em uma cadeira e a diretora compõe o plano como se o espaço da amiga, ao seu lado, estivesse (e está) vazio. Além disso, Fennel consegue tornar os momentos onde a protagonista está fria, distante em cenas estéreis, espaçosas, ao passo que parece invadir seu espaço nos poucos momentos de vulnerabilidade, aproximando a câmera de seu rosto, sendo particularmente doloroso ver sua reação quando descobre que o namorado se encontrava presente no fatídico dia - e, aqui, é possível ver a magnitude da performance de Mulligan, que se desarma e se destrói completamente ao descobrir que uma gravação do incidente existia e que poderia ter, quem sabe, salvo Nina.
E falando sobre o Ryan de Bo Burnham, que escreveu e dirigiu o ótimo “Eighth Grade” sobre uma jovem pré-adolescente que sofre um assédio sexual, o considero uma peça integral para desvendar o “enigma” que é a bússola moral deste filme. Pois se graças à excelente performance do ator tendemos a simpatizar com Ryan (um pediatra, paciente com a condição peculiar de Cassie, compreensivo e até um pouco desajeitado), ao descobrirmos de seu envolvimento no episódio a mensagem do longa parece clara: todo homem é um abusador em potencial. Tal afirmação que ele responde com um desesperado “você não tem nada do que se arrepende?” e, afim de discutir os temas propostos pelo filme, preciso refazer a pergunta a vocês (e a mim), mesmo que repudie o motivo pelo qual ele a faz.
Mas o segmento envolvendo Alison Brie também é essencial para entendermos a complexidade deste “questionamento” de Ryan, sendo que a própria só percebe o tamanho do horror envolto no ato de Nina após ter sido manipulada por Cassie para acreditar ter sido, ela própria, abusada por um homem enquanto alcoolizada (e acho genial o filme nunca deixar claro se ela foi ou não). “Não sei como, na época, achávamos engraçado”, ela diz, mas mesmo sem ter sofrido qualquer dor física, mesmo sem ter memórias do acontecimento, a simples ideia de ter passado por algo semelhante a corroeu de maneira que teve de aceitar a própria canalhice. Também apontado por uma pessoa com quem conversei sobre o filme, é fascinante perceber como Fennell pinta de maneira quase estereotipada (e devidamente irônica e ácida) a maneira como mulheres frequentemente estão uma contra a outra, ao passo que os homens não hesitam em se ajudar não importa a gravidade da situação.
E aqui preciso traçar um paralelo com o brilhante “Nunca Raramente As Vezes Sempre”, um filme similar em temática, mas completamente diferente em abordagem. Para o jovem rapaz daquele filme, o que ele faz com Skylar não é um abuso, assim como para muitos homens, e até mulheres, é culpa destas serem abusadas quando perdem o controle de o quanto bebem. Pior ainda, se aquele filme sugeria que a presença de qualquer homem é agressiva, este sugere que até uma figura materna pode ser intrinsecamente machista, e a cena envolvendo Connie Britton nos convida a, também, sentir um sádico (e hediondo) prazer ao vê-la desesperada agora que a situação ocorre com sua filha - e sentimos também alívio ao descobrir que não, a menina não está em perigo, fazendo com que apenas sua mãe sofresse como resposta às próprias atitudes (ou falta delas).
O que me traz, de volta, às ações de Cassie no caminho de sua vingança. Seria seu objetivo apenas conscientizar pessoas ignorantes e insensíveis as fazendo passar pela mesma dor e desespero que sua amiga passou? Ou seria uma causa menos nobre, e ela queria apenas vingança sem nunca arriscar a própria liberdade ao cometer qualquer crime? Essas ações funcionam ou as pessoas apenas ignoram e seguem com suas convicções? Ou pior, as fazer passar por algo semelhante ao que ocorreu com a amiga é certo?
Diversas perguntas que, apenas assistindo ao filme, não julgo ser possível responder e aqui jaz a maior qualidade de “Promising Young Woman”. Genial em seu conceito, excelente em sua execução, mas duvidoso quanto à sua moral, é um daqueles filmes que podemos falar por horas, anos, décadas, sem nunca chegar a uma conclusão de verdade, mas aprendendo e descobrindo muito sobre ele (o filme), a sociedade e nós mesmos durante o processo.
Quanto à cena final:
Novamente aludindo para a excelente trilha sonora, o longa encerra com a versão de Juice Newton de “Angel Of The Morning”, canção escrita por Chip Taylor em 1968, regravada e reutilizada em diversos filmes e séries (de “Garota Interrompida” à “Deadpool”). Claramente aludindo ao fato de que as duas amigas agora não estão mais vivas, considero a música essencial para decidir se o final é positivo ou não.
De certa forma, entendo as críticas que muitos apontaram quanto ao desfecho: a morte de Cassie apenas reforça a ideia de desesperança provocada pelo longa, que tem uma catarse ao mesmo tempo gratificante, mas dolorosa, além da contradição ao ter a polícia como solução sendo que, sabemos, e o filme repete, quase nunca é assim. Além disso, alguns apontam para o fato de que os personagens masculinos apenas sentem medo pelas próprias reputações, e nunca parecem aprender ou empatizar com a dor feminina.
Mas para responder, com a minha leitura do final, as críticas acima: embora tenha ficado com um gosto extremamente amargo de saber que o destino de Cassie não foi diferente de muitas outras mulheres vítimas da violência masculina, ao encerrar o filme com esta música e com as assombrosas mensagens no celular de Ryan, sinto como se a própria tivesse plena consciência do que fosse lhe acontecer. Pois apesar de se apoiar na tal hiper-realidade, os perigos mostrados aqui são reais e, infelizmente, a justiça não vem na forma que gostaríamos - no caso de nós, sádicos, de Nina destruindo Al por completo. O que ela faz, no entanto, é reverter algo que comenta ser o motivo de sua amiga ter perdido suas forças, pois se antes era impossível mencionar o nome de Nina sem falar do de Al, agora é o contrário.
Falando de justiça, mostrar que a polícia necessitou de provas irrefutáveis da morte de uma mulher e do estupro público de outra para agir não fala positivamente da instituição, algo que rima perfeitamente com a cena envolvendo a reitora da universidade. E, por fim, falemos de Al: surpreendentemente emotivo e aparentemente pouco ou nada interessado em trair a mulher na despedida de solteiro, Fennel jamais o dá qualquer possibilidade de tentar justificar o atroz ato que cometera no passado, inclusive, ao assassinar Cassie em um momento de desespero e raiva, é visível a culpa em seu olhar (boa atuação de Chris Lowell, diga-se), agora se por medo ou consciência, não sabemos. Ao não dar a ele este momento, a diretora talvez determine a mensagem final de seu filme: não há o que ele, ou qualquer homem capaz de um ato assim, possa dizer para justificar suas ações.