Crítica | Nunca Raramente Às Vezes Sempre
Como homem (o que ainda não acho que seja), avaliar este filme de Eliza Hittman é algo que Nunca farei tão bem como uma mulher, Raramente conseguirei compreender todos os seus temas, Às Vezes poderei auxiliar com a perspectiva masculina, mas Sempre devo tentar.
Pois apesar de escrever este parágrafo sofrível acima, acredito que como homens em uma sociedade que oprime o sexo oposto, devemos fazer o melhor possível para, ao menos, entender o quão difícil é o mundo para todas elas.
Terceiro filme de Hittman, “Nunca Raramente Às Vezes Sempre” traz as jovens Sidney Flanigan e Talia Ryder como Autumn e Skylar, primas que moram no interior do estado da Pensilvânia e tem de viajar à Nova York para que Autumn possa realizar um aborto seguro. E legal.
Com um orçamento de pouco menos de cinco milhões de dólares, não me surpreenderia se o filme tivesse sido feito de bolso: com uma câmera na mão intimista, que nos coloca próximo o suficiente das protagonistas para que possamos perceber seu desconforto, algo que acaba gerando o nosso próprio, o longa chega a lembrar um documentário, daqueles quase invasivos, onde conhecemos mais do que devíamos sobre aquelas pessoas. O curioso é que Hittman faz isso mesmo nos contando apenas o suficiente, e com diálogos necessários apenas para fazer a história andar, pois Autumn e Skylar tem tanta cumplicidade entre si que se sentem confortáveis com longos silêncios e se comunicam com olhares e frases curtas como só duas pessoas que se conhecem a tanto tempo poderiam.
Já aqui, é preciso elogiar o trabalho das duas atrizes, atingindo uma naturalidade e veracidade reservada apenas para grandes intérpretes, pois o roteiro de Hittman jamais reserva espaço para grandes cenas ou monólogos, sendo que os melhores momentos são aqueles onde vemos as duas em seu mais vulnerável, reprimindo suas emoções de maneira angustiante, quase desesperadora para quem quer que as assista. Em uma tomada de vários minutos Flanigan responde a algo que dá título ao filme, a câmera jamais sai de seu rosto, que muda de maneira tão sutil a cada nova revelação que é como se as pistas que procuramos sobre o que lhe aconteceu fossem lágrimas na chuva. Em outra cena, ela segura a mão de Ryder em um momento de invasão, em que esta se prova a melhor amiga que alguém poderia ter.
Mas se tecnicamente o filme é impecável - e aqui destaco, também, os enquadramentos propositalmente irregulares que as deixam deslocadas em cena, o uso das luzes de Nova York como algo desnorteante, a própria forma como a diretora jamais abre a câmera mesmo quando na megalópole, como se não importasse o quão magnífico é o lugar a sua volta quando elas estão ali por um motivo tão triste, a fotografia granulada, sem vida e sufocante de Hélène Louvart -, é o comentário pró-aborto tecido pela cineasta que o torna um dos melhores de 2020. Inclusive, caso o tivesse assistido antes estaria em terceiro na minha lista.
Transformando a figura masculina em uma ameaça constante, poucos filmes, se qualquer, me colocaram tão próximo da experiência feminina, onde desde um cliente, a um estranho no metrô, a uma paquera sem noção se tornam agressores, não físicos, mas emocionais. Além disso, algo que precisa sempre ser reforçado e que este filme, que devia se tornar obrigatório nas escolas, comunica como nenhum outro é que a decisão de abortar depende única e exclusivamente delas. Nós, como homens, podemos apenas apoiar e, ao menos, procurar compreender.
“Nunca Raramente Às Vezes Sempre” é um dos melhores e mais importantes filmes dos últimos tantos anos.
10
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