Crítica | Ao Cair da Noite

critica ao cair da noite

Fazia tempo que queria assistir a este filme e, por acaso, vi que seu diretor é Trey Edward Shults. foi o que faltava.

Em apenas seu segundo longa (e vou logo conferir o primeiro), Shults mostra o que “Waves” confirmaria: este é um dos diretores mais talentosos e singulares da nova geração que, apesar de não aparentar ser um roteirista brilhante, compensa com uma habilidade rara por trás das câmeras.

Leiam o parágrafo anterior com cuidado: ele não aparenta ser um roteirista brilhante do ponto de vista literal, sendo que ambos os filmes que conferi dizem menos no texto do que na direção, principalmente este “Ao Cair da Noite” que, em suma, é um filme sobre uma família que tem de lutar para sobreviver a um vírus que destrói os infectados. Não, não o assisti por causa da pandemia, mas cabe perfeitamente bem.

Pouco ou nada interessado em explorar a origem, natureza ou impacto do vírus na humanidade, Shults concentra todas as atenções na família composta por Paul, Travis e Sarah, transformando o longa em algo que, em uma escala minimalista, lida com os problemas que muitos de nós passamos durante este mais de um ano de quarentena (pros responsáveis que se cuidaram). Não sei dizer, mas desconfio que o cineasta não tenha fixado no papel, por exemplo, as paranóias que tomam conta da cabeça de Travis, um jovem no auge de seu despertar sexual e que tem de conviver com a incerteza quanto ao futuro (alguém?). Inundando os sonhos do rapaz de pesadelos escuros que se misturam com os corredores ameaçadores e estreitos da casa, Shults alia movimentos de câmera que parecem prestes a revelar algo a todo momento, incluindo zooms propositalmente desconfortáveis, com uma trilha sonora sensorial e agoniante de Brian McOmber, que fora uma faixa com batidas militares em certa passagem funciona em união com a fotografia mórbida e escura de Drew Daniels.

Capaz de extrair a última gota de paranoia de cada um de seus atores, é como se todas as pessoas em tela já estivessem exaustas muito antes do longa começar, algo que a própria maquiagem ajuda a reforçar. Apesar de não serem tão desenvolvidas como os personagens masculinos (uma falha do roteiro, diga-se), Carmen Ejogo e Riley Keough criam camadas de profundidade: a primeira apresentando uma frieza inesperada e a segunda soando levemente manipuladora e sádica em uma conversa, a princípio, amigável com Travis. Este, que é trazido a vida em uma performance não apenas aterradora de Kelvin Harrison Jr., mas inacreditavelmente contrastante com o que faria em “Waves” e que me deixam curioso para acompanhar os próximos passos de sua carreira. Em uma cena comovente, ele se emociona com um momento de paz e descontração da família que passam a abrigar, e percebemos ali duas coisas: o quão genuinamente bom é Travis e o quão só se encontra.

Mas se Travis é a peça central para se desvendar os temas propostos pelo filme, são Paul e Will que movem a narrativa. O primeiro, interpretado por Joel Edgerton em um tipo similar, mas mais intenso que o que fez em “Loving”, e o segundo sucedendo em nos fazer sempre duvidar do que diz. Um dos poucos detalhes de real destaque do roteiro em si, inclusive, vem em um diálogo entre os dois onde Will contradiz algo que havia dito antes, e Edgerton consegue, com apenas um olhar, passar um misto de desconfiança e ameaça ao novo companheiro. O diretor capta com perfeição o incomodo provido das duas famílias dividindo a casa, seja em momentos como este, ou em cortes geniais como quando o pequeno Andrew olha para cima e parece que enxerga Travis tomando banho, em uma sugestão desconfortável e eficaz de que acabam, querendo ou não, invadindo o espaço um do outro.

Intenso e tenso durante seus curtos 90 minutos, “It Comes At Night” poderia se beneficiar, ao menos um pouco, de mais informações, pois apesar de ter um final aberto para interpretações (e que vai me deixar acordado por um bom tempo), sinto como se o filme pudesse ir além nos temas e conceitos que aborda. Pois apesar de ser sobre um vírus, é realmente sobre a dor provocada pelo isolamento e pelas perdas vindas dele, mas apesar de Shultz suceder em nos mostrar isso, é quase como se a origem desta dor fosse deixada de lado, e ficássemos a mercê apenas da desconfiança provocada por ela em cada um dos personagens. Ao fim, é possível questionar o que cada uma daquelas pessoas se propõe a fazer para proteger aos que ama? Se a resposta for não, e a minha é, o longa pode parecer um tanto vago em sua discussão. Mas, contraditoriamente, não acho que o seja, pois cá estou, tentando desvendar seus mistérios e sentindo pela dor de seus personagens.

E oferecendo ao menos uma pequena interpretação própria da cena crucial (com Spoilers): não faço a mínima ideia do que abriu a porta vermelha (óbvia em seu simbolismo, mas não menos eficaz por isso), mas percebam como a morte de Travis parece rimar poética, mas pesarosamente, com os pesadelos que tem durante toda a projeção, mostrando que todas suas inseguranças se centravam em torno do medo da própria morte. Por isso, e também por ser um jovem tão bom, sua ausência pode ser claramente sentida no último plano do filme, quando sua mãe e pai, sentados opostos um ao outro na mesa, tem a cadeira vazia de seu filho entre eles.

Shultz é um cineasta que nos desafia e jamais desconfia de nossa inteligência - racional e emocional -, e transforma “Ao Cair da Noite” em um filme marcante e que, definitivamente, não acaba quando termina.

8.4

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