Crítica | Honeyland
“Honeyland” é um filme lindo, sobre uma pessoa singular que reflete o que há de mais errado no nosso mundo pluralizado.
Na minha jornada como cinéfilo, que ainda está no começo, uma grande lacuna é meu raso conhecimento de documentários, algo que decidi por endereçar em 2021. Dos 240 filmes que assisti em 2020, apenas um pertencia ao gênero, o genial “O Homem Urso” que me fez abrir os olhos para maravilhosas histórias que, dificilmente, virariam filme de ficção.
Portanto, em meio à maior pandemia que já atingiu o Brasil e que já dura duas décadas (achou que era Covid?), decidi assistir este pequeno filme sobre Hatidže Muratova uma cuidadora de abelhas que mora isolada em um vilarejo na Macedônia e com o pouco mel que consegue extrair sem prejudicar as abelhas, que trata com todo o amor e afeto, tem de cuidar da mãe adoecida.
Horas, a grande probabilidade é que 99,9% das pessoas no Brasil não tenham chegado perto deste filme, pois mesmo tendo se tornado o primeiro documentário a ser indicado tanto em sua categoria como por Melhor Filme Estrangeiro no Oscar, nunca que um filme sobre uma pessoa, e assunto, tão peculiar fariam sucesso no Brasil. Pois o que o brasileiro menos gosta é de ver refletida sua realidade em tela, seja ele de classe média (filmes como “O Som Ao Redor”, “Entre Nós”), alta (“Que Horas Ela Volta”, “Aquarius”) ou baixa (“Bacurau”, “O Lobo Atrás da Porta”, para citar apenas recentes), seja por jogadores de futebol que repele assim que percebem que eles são suas exatas cópias caso tivessem “vencido” na vida.
Mas o que um filme Macedônico tem a ver com o que passamos no Brasil? Tudo.
Pois diferente do que se vê diariamente na casa mais vigiada do país, a verdade e a vulnerabilidade das pessoas que habitam este microcosmos que o filme apresenta é comovente, talvez não tanto como um jovem branco, hétero e rico chorando por ser branco, hétero e rico em uma atuação que faz jus ao que apresenta nas novelas que é escalado por ser filho de quem é, ou melhor, talvez não para as pessoas que assistam isso e se sintam convencidas de que é real. Mas para qualquer pessoa que esteja disposta a emprestar um pouco de sua atenção e empatia, sim. Mais importante, as dificuldades vividas pelas pessoas aqui não são muito diferentes do que famílias isoladas no sertão passam, assim como a escassez de praticamente tudo ao redor de Hatidže e da mãe lembra diretamente o estado caótico em que se encontra o estado do Amazonas.
O curioso é que “Honeyland” jamais se auto-denuncia como documentário. Sem nenhuma narração, ou explicação sobre a condição de Hatidže, podemos até julgar, erroneamente, que assistimos a cenas fictícias, mas o que se passa são três anos na vida da cuidadora de abelhas após fazendeiros nomades se mudarem para sua vizinhança. Utilizando os estilos de vida contrastantes como comentário ambiental, os diretores Tamara Kotevska e Ljubomir Stefanov mostram com como Hatidže tenta viver em harmonia com a natureza ao seu redor, graças aos lindos planos que a equipe de fotografia capta dela em meio a flores, ao céu, ou as montanhas, ao passo que a família representa a forma como sugamos todos os recursos a nossa volta sem pensar nas consequências e, por isso, a câmera se torna mais fechada e mostra imagens que nem sempre gostaríamos de assistir. Inclusive, a estupidez humana, evidenciada pela segunda maior pandemia que atingiu o Brasil no século 21 (agora sim, a Covid), pode ser facilmente constatada, mas jamais compreendida quando Hussein Sam, o pai da família nômade, ao perceber que poderia fazer dinheiro vendendo mel, é presenteado por Hatidže com abelhas para que comece sua própria colônia, mas ao ignorar seus conselhos de sustentabilidade coloca em risco tanto as abelhas, como as pessoas que delas necessitam.
Porém “Honeyland” vai além, e ainda retrata os aspectos sócio-culturais que levaram Hatidže a viver a vida que leva. Em uma conversa com a mãe, já próxima da morte, ela fala com esperança em se casar (mesmo já tendo seus 60 anos e pouca ou qualquer noção de como funciona o mundo “real”) para não ficar sozinha, e descobre que quem a impediu de ser prometida quando jovem foi o próprio pai. De aparência mal cuidada, dentes caídos e um nariz desproporcional, Hatidže conquista por ser um ser humano raro, diria até fictício, preocupada com tudo e todos a sua volta e dona de uma aparente simplicidade que se revela de uma beleza singela, complexa. Em diversas cenas ela utiliza um moletom amarelo, e me pergunto se isso foi proposital pois por vezes sinto como se ela se considerasse membro das colmeias das quais cuida. Ao final do filme, se você não simpatizar com ela é porque há, definitivamente, algo de errado com o seu caráter.
Em uma crítica que, julgo, pouquíssimas pessoas vão ler, me sinto bem por escrever sobre um filme que me comoveu, por apresentar uma realidade que jamais conheceria, apenas para deixar registrado meus sentimentos quanto a ele. Pois diferente dos 15 minutos de fama que se tornam obsessão anual no Brasil, o simples fato de conhecer uma pessoa tão iluminada quanto é Hatidže Muratova me fazem sentir que as duas horas, que passei assistindo e escrevendo sobre o filme, valeram a pena.