Crítica | A Escavação
novo sucesso da netflix, “A Escavação” é um lindo filme sobre a importância do passado.
Centrado em torno da descoberta do que restou de um navio Anglo-Saxão na propriedade rural de Edith Pretty, pelo escavador Basil Brown, o filme dirigido por Simon Stone (apenas seu segundo) é como os artefatos encontrados pela equipe arqueológica. Apesar de suas imperfeições, seu significado e valor tornam sua descoberta algo memorável.
Considero uma falha da Netflix, inclusive, que este filme seja lançado fora do período de elegibilidade para a temporada de premiações, pois desde suas performances até seus aspectos técnicos seriam apostas seguras para diversas categorias, não apenas por sua qualidade, mas por agradarem os membros mais conservadores da Academia. Afinal, nada conquista mais estes votantes que um bom filme de época (o único motivo de algo como “Os 7 de Chicago”, por mais que não seja realmente de “época”, ser favorito absoluto em 2021), baseado em fatos reais e com um subtexto relacionado à Segunda Guerra.
Apesar de não conhecer o trabalho anterior de Stone, de longa data no teatro britânico, posso dizer que ele ainda parece estar se encontrando como diretor, mas o faz de maneira graciosa. Em seus melhores momentos, “A Escavação” me lembrou a maneira como Terrence Malick abordou “A Árvore da Vida”, sendo que ambos surgem como viagens pelas memórias do passado, mas se a obra prima de Malick aponta (de maneira apaixonada) para insignificância de tais memórias perante o universo e a vida a nossa volta, o filme de Stone procura resgatar estas memórias, com o objetivo de nos relembrar de onde viemos, enquanto aponta para onde vamos. Sim, algo evidenciado pela tocante cena final, onde o jovem Robert (Archie Barnes) insiste em levar a mãe para a única jornada que aquele barco fossilizado ainda poderia travar.
Aplicando grandes angulares e quase sempre deixando a câmera aberta nos espaços externos, Stone compõe um efeito que fica entre o sonho e uma doce lembrança, como se a vida daquelas pessoas fossem (e são) memórias importantes de todos nós, que assistimos o filme. A fotografia de Mike Eley é vibrante, ressaltando os imponentes raios de sol e conseguindo o impossível ao transformar os montantes de terra em imagens gratificantes, justamente por sabermos o que significam, algo que encontra rimas na paleta de cores achocolatadas nos ambientes fechados. E prestem atenção em como Stone enquadra seus personagens em relação a estes montes, pois quando enfrentam um obstáculo a terra parece cobri-los - e, em determinada cena, o faz. Além disso, a reconstrução de mundo encontra o balanço perfeito entre o detalhismo dos figurinos, móveis e utensílios e o realismo providenciado pela maquiagem, que nos faz acreditar que aqueles atores estão, de fato, cavando.
E embora um filme de época sobre arqueologia possa soar chato, a edição do experiente Jon Harris é precisa e envolvente, tornando as duas horas em uma experiência dinâmica, por mais que pouco aconteça que não envolva a escavação em si, ao passo que a trilha sonora de Stefan Gregory é uma das melhores que ouvi em tempos, conseguindo a proeza de rechear praticamente todos os momentos do filme sem jamais soar manipuladora. Apostando em acordes crescentes que destacam a importância do que é tirado da terra, a música ainda dá um tom etéreo que se alia perfeitamente aos visuais proporcionados por Stone e Eley.
Infelizmente, se algo impede “A Escavação” de marcar presença, já tão cedo, entre meus prováveis favoritos de 2021, é o roteiro de Moira Buffini, que toma liberdades criativas em cima dos relatos históricos e opta por criar sub-tramas que pouco, ou nada, adicionam para a narrativa. O maior exemplo sendo, obviamente, os dilemas amorosos que vive a arqueóloga Peggy Piggott (sempre gosto de Lily James, mas sempre com ressalvas, acho que ela tenta demais) e que pertencem a outro filme - inclusive, o diretor quase estragou a cena final ao alternar o lindo momento entre Edith, Basil e Robert com a resolução deste romance (aparentemente fictício) de Peggy. Já outros personagens, como a compreensiva e adorável May (Monica Dolan), o carismático menino Robert e o rabugento Charles Phillips (Ken Stott) conquistam com pouco tempo em tela.
Porém é claro que o grande destaque do elenco fica por conta de Ralph Fiennes como o escavador Basil Brown. Dando ao personagem um caminhar entortado, advindo de seus muitos anos de trabalho braçal e excesso de peso nas costas, Fiennes consegue também empregar sutileza na forma como o homem fala, sempre com a voz calma e cordial, e como olha, sendo que, empregado a vida toda, teve de aprender a baixar ou desviar o olhar na hora de se comunicar com seus superiores, algo que faz mais para evitar conflitos do que por medo, ou até mesmo respeito. Pois como todo bom artista (e acredito que sua contribuição para a cultura britânica seja muito próxima da de um artista), Brown tem confiança nas habilidades e não hesita em defender suas convicções com firmeza sem jamais perder a compostura.
Já Carey Mulligan é outro caso a parte. Possivelmente a caminho de uma indicação ao Oscar pelo excelente “Promising Young Woman”, a atriz aqui encarna um tipo completamente diferente, uma mulher forte e bem resolvida com seu destino, mesmo que as dores físicas e emocionais a frustrem. Alternando o sotaque e a voz para interpretá-la, Mulligan ainda convence pela fisicalidade frágil que exibe e por passar com naturalidade a decepção que Edith sente na própria condição.
Mas se os aspectos técnicos de “A Escavação” são, por si próprios, encantadores, é a mensagem defendida pelo filme que me conquistou. Dando significado à uma atividade que muitos podem julgar como perda de tempo, o filme nos relembra como é importante conhecermos nossas origens ao resgatar tempos passados, e ver a sincera alegria de cada uma daquelas pessoas ao descobrir cada pequeno pedaço daquele navio, e imaginar o que sentiram, é algo que valida tudo que construímos em vida como humanidade.