Crítica | In Our Day

UM DIA COMO QUALQUER OUTRO

Em filme menor, Hong Sang-soo sintetiza sua busca pelo mundo no mais simples cotidiano


A coisa que me pega no Hong Sang-soo é como o cara faz filmes que nós, de um Brasil distante física e culturalmente, tendemos a entender como inerentemente coreanos, como filmes que dialogam e ressentem o viver cotidiano do país.

Algo que não é incomum: nunca pisei no Japão (graças a pandemia, de modo contrário, teria ido a Tóquio em 2020), mas Ozu parece “mais japonês” que Kurosawa, e tampouco fui a França, mas Rohmer parece mais francês que Bresson.

E falando nesses dois, ultimamente Hong tem me remetido cada vez mais a uma mistura - ou melhor, uma corrupção do primeiro pelo segundo? Embora seus filmes continuem semelhantes aos modos de Rohmer, há cada vez mais uma obsessão pela simplificação, por desnudar do Cinema seus elementos mais comuns, em busca justamente de uma transcendência Bressoniana. Daí, até faz sentido seguir chamando seus filmes de “sul-coreanos”, pois, chuto, seguem refletindo os modos de seu país natal, mesmo que cada vez mais Hong abra sua obra para o mundo - mesmo que seja, como só poderia ser com ele, um mundo de especificidades.


EM BUSCA DO SIMPLES UNIVERSAL

Se In Water tem um dispositivo mais chamativo e certamente vai ser o filme mais lembrado dele em 2023, In Our Day me parece conversar mais com outros filmes de sua filmografia enquanto segue nessa jornada de evidenciar a câmera como presença tangível da mise-en-scène.

No caso, o filme que se segue além da primeira cena é bem mais “superficial” visualmente, sem os enquadramentos e camadas de A Mulher que Fugiu (2020) ou a exploração espacial e metafísica de O Filme da Novelista (2022). Tudo acontece nesses espaços pré-determinados - praticamente cômodos que o cara encontrou e decidiu que ali seria o cenário do seu novo filme - mas diferente desses outros, parece que Hong nao tenta transcender ou ressignificar esses espaços com um artifício mais óbvio, e sim com a sutileza da encenação, ou mesmo com o esgotamento dessa (novamente, um traço que divide com Bresson, embora aquele fosse pra um lado mais pessimista).

A câmera na maior parte do tempo fica num mesmo ângulo, quando se mexe é só para se acomodar aos movimentos dos atores (que, além de tudo, interagem menos com o espaço como de costume). Talvez o filme mais econômico dele em termos de instrumentos narrativos, e justamente nisso, nessa estagnação da imagem, que surgem aqueles momentos cosmológicos, quase oníricos, que parecem abrir uma terceira dimensão em um filme sem relevo - o papo de coach até me deu uma balançada, no fim.

Pra mim, In Our Day, com sua difusão da luz estourada naquela cena do telhado, me remete a um domingo nublado, com Santos e Flamengo passando na TV, a branquitude da Vila Belmiro fazendo parte crucial da estética. Aquele papo de coach do poeta, aquele interesse momentâneo da dupla que me remete muito aqueles projetos nossos que nunca tomam forma, os planos quase estáticos ressaltando a estagnação e insignificância de lugar e cena. Com tudo isso, sinto como se Hong abrisse um portal para sensações que tenho do outro lado do mundo, em maios e setembros nublados em Porto Alegre.

E embora seja evidente que há um interesse dele, principalmente nessa última fase, em ressaltar o poder do Cinema de abrir janelas, o curioso é como cada vez precisa de menos pra isso. Se a grande cena ressignificadora de O Filme da Novelista vem no final, em In Our Day vem no começo: quando Kin Min-hee se desloca pra falar com o gato e a câmera reenquadra a cena de modo a mostrar a amiga dela pelo espelho - não mais fisicamente frente à câmera, mas ainda em cena tanto pela compreensão intangível do espaço (um traço Mizoguchiano) como pela (e inerente a) materialização visual do reflexo.

Acho até que o real artifício se revela com isso: enquanto o núcleo das duas tem mais movimento e mais eventos (o desaparecimento do gato, a guria nova que chega, as trocas de cenários), o núcleo do poeta parece ser totalmente despido de qualquer elemento que não o básico, exceto, é claro, pela câmera da estudante que grava tudo que acontece. Nunca vemos pela visão dela, nunca vemos o registro, mas só de estar ali, gravando, a mais simples das cenas ganha uma nova dimensão.

E esse Santos e Flamengo pode até não ter nem Ronaldinho nem Neymar, mas há algo de mágico em experienciar um dia como outro qualquer. Na Coreia, ou no Brasil.

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