Crítica | Anatomia de Uma Queda

CINEMA VERDADE?

Entre aparências e especulações, Justine Triet faz filme sobre a linguagem humana


Um erro muito comum ao atribuir filmes a possíveis referências é pensar apenas no texto. Se o filme tem um assassinato, é Hitchcock, se tem um tribunal, é Preminger. Assim, Barbie (2023) passa por Tati e Demy sem nunca, por um minuto sequer, se filiar a mesma língua, assim como Tudo em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo (2022) até reproduz, gramaticalmente, uma cena de Wong Kar-Wai, mas fica a uma distância (academicista) quase inconcebível.

Pois assistindo Anatomia de Uma Queda, filme de Justine Triet que deve estourar no Oscar agora em 2024 e que muitos remeteram aos dois diretores que mencionei acima, me veio à cabeça tudo menos seus filmes. Pra ser justo, todo o jogo de investigação arquitetônica (que organiza a cena em um bloco distanciado para melhor compreensão de seus elementos) dá os ares de Festim Diabólico (1948) e Disque M Para Matar (1954), e Preminger tem, afinal, um famoso filme que é referenciado no título deste.

Mas, por mais que tenha feito sua carreira também em cima da cosmologia do olhar, Hitchcock nunca foi Rashomon (1950). Mais cedo ou mais tarde, descobrimos a verdade em seus filmes: a diversão está justamente em como essa é escondida dos próprios protagonistas, maquinada por vilões ou forças que beiram o sobrenatural, mas que, no fim, se explicam. Já Preminger, embora mais sugestivo, também não é um de divagar sobre os lados da verdade, mas sobre sintetizá-la a seu próprio método - algo entre o romântico e o macabro.

Me veio à cabeça, então, outros dois nomes, que normalmente não conversariam, mas que aqui parecem tecer a ideia cênica do filme de Triet, um dos mais curiosos, divertidos e, porque não, bem resolvidos que assisti em 2023.


PERDIDO NA TRADUÇÃO

Tópico que tem me chamado cada vez mais atenção é a relação do Cinema com os demais fenômenos de linguagem. Muito falamos e ouvimos sobre a linguagem cinematográfica, mas de pouco discutimos que, dentro desse escopo basicamente ilimitado, existe uma quantidade desconhecida (mas de singularidades reconhecidas) de línguas. Preminger fala a de Mizoguchi. Hitchcock fala a de Nicholas Ray. Ambos falam a de Lang.

Dentro dessas línguas, temos gramáticas: basta seguir um tutorial de planos e composição que um diretor pode fazer uma cena semelhante a de outro. Mas entre copiar uma frase - ou melhor, o estilo de uma frase - e copiar uma língua, um estilo de se comunicar, temos uma distância tão grande como a dos filmes mencionados no primeiro parágrafo com suas supostas referências.

Anatomia de Uma Queda, em seu texto, em sua trama, em seu “roteiro”, lida com a investigação de um crime (tema mais comum da história do Cinema, provavelmente), algo obviamente análogo a Hitchcock e Preminger. Mas Cinema é imagem, e em sua língua, em seu modo de se comunicar, Anatomia… é um filme que, ao menos pra mim e não vi mais ninguém comentar, fala o Cassavetes… se este fosse tomado por um impulso de Fincher.


A VERDADE QUE NÃO IMPORTA

Na verdade acho até difícil os filmes de crime de hoje, pelo menos aqueles que pisam no mainstream, não conversarem com Fincher. De todos os megalomaníacos diretores norte-americanos que surgiram nos anos 90 (e foram muitos), é talvez o mais influente por ser possivelmente o único que filma (se consegue ou não, fica a cargo de quem vê) a contemporaneidade em toda sua fragmentação. Muito antes de multiversos e tiktok, Fincher fez filmes esquizofrênicos com pontos de vista hiperativos, um Cinema de instabilidade psicológica e de obsessão das aparências (o Ubermensch em Clube da Luta, a sociopatia em Garota Exemplar).

Pois que, para além de descobrir a verdade (tão cara a Hitchcock, tão essencial a Preminger), o filme de Triet se preocupa mais em especular, em tornar crível, em enquadrar o crime como algo a ser apresentado no tribunal, em frente a tantas pessoas. Na primeira vez que vemos uma memória do casal a sensação até é de uma revelação, até que percebemos que o momento não é diegético, mas uma especulação fantasma baseada nas informações não confiáveis que temos até ali.

E são muitos os métodos: uma maquete, uma reconstrução digital, uma re-encenação, uma gravação, uma descrição patológica que tenta pintar a esposa como um monstro a ser revelado como um daqueles vilões do Scooby Do. Um filme de muitas aparências, de muitas superfícies, mas que nunca se compromete com 1: a verdade, 2: com a seriedade que esta, em tese, traz consigo.

Novamente retomando o clássico de Kurosawa, Anatomia de Uma Queda já surge denunciando sua própria natureza farsante E brincante: enquanto vemos uma entrevista fake (que combinada ao estilo documental já sugere uma nova camada), a presença do marido é evocada (talvez a coisa mais Hitchcockiana do filme todo seja essa cena, inclusive) sem nunca o vermos, por meio da versão instrumental de PIMP de 50 Cent. A risada que já foi sincera no começo se tornou recorrente nas tentativas de recriar a cena, um filme corrompido por si mesmo.


ALÉM DAS APARÊNCIAS

E digo corrompido justamente porque, em seu cerne, o filme de Triet não é nem a investigação e nem mesmo as aparências (ele é sobre isso, mas não é isso), mas sim o drama que envolve seus dois protagonistas. O que me leva a Cassavetes e, principalmente, Love Streams (1984) e sua gramática de liberdade cênica, que permite uma movimentação instável de seus personagens ao passo que os desnuda completamente quando a câmera encontra seus rostos que, mesmo afetados pela textura do filme, revelam coisas que o texto nunca diz.

Um filme de textura muito suavizante, e de uma encenação também muito espontânea, errática: o modo como mãe e filho interagem, as expressões destes (a câmera indo e voltando sem sair do rosto do guri é uma balaca que, ao meu ver, evidencia essa conversa entre os dois diretores), a frustração de uma mulher que não consegue se expressar tão bem em uma língua e que num impulso troca para outra. A cena da comemoração no bar, por exemplo, é um momento ala Hong Sang-soo que ignora completamente qualquer tentativa de revelar qualquer coisa: é apenas um momento de calor humano.

No fim, a especulação Fincheriana, os múltiplos pontos de vista, são justamente uma corrupção do Cinema Verité ao qual Cassavetes é considerado nome central. Uma corrupção perfeccionista (de buscar essa verdade absoluta) da estética documental empregada por Triet que, inclusive, rejeita a limpidez do digital em prol de uma fotografia mais borrada, mais incerta - gosto muito como a casa, esse lugar sagrado, de momentos calorosos e esquentados, é reproduzida a exaustão asséptica durante a investigação.

O grande desafio que Anatomia de Uma Queda tomou para si, e que a diretora consegue executar de maneira suficientemente bem, é não apenas balancear, mas unir sob a ideia mor do filme tanto uma proposição cinematográfica especulativa quanto um comentário dialético sobre a incomunicabilidade da linguagem, e o impacto deste em como enxergamos e sentimos o mundo.

O que enriquece o “filme” são justamente as maneiras que Triet usa para mascarar essa investigação, e as nuances que os problemas de linguagem de seus personagens adicionam ao processo. Um casal franco-alemão que fala em inglês, um filho com deficiência visual, um tribunal em três línguas e, no fim, uma verdade que nunca descobrimos. O que resta, assim como o que resta em Cassavetes, não é portanto o mundo insólito, inóspito de Fincher, ou a frieza de Preminger, ou a tragédia de Hitchcock, mas sim as relações daquelas pessoas.

Assim como irmãos, e filhos e etcs tem de aceitar em Love Streams, o guri toma uma versão como verdadeira, e isso o conforta mais do que a verdade.

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