BEYOND | A Magia de Monstros S.A.
Quando criança, um de meus filmes favoritos era, sem sombra de dúvidas, esta pequena obra prima da Pixar.
Curiosamente e, diferente de outros filmes dos quais já escrevi sobre, ainda não consigo determinar exatamente o porquê.
Escrito por Andrew Stanton e pelo falecido Dan Gerson, “Monstros S.A.” foi o primeiro filme dirigido por Pete Docter para os estúdios que tinham menos de dez anos de existência mas que, após revolucionarem as animações com “Toy Story” e fazerem uma sequência praticamente tão impressionante (eu gosto bastante de “Vida de Inseto”, também), já eram considerados uma força em Hollywood.
As chances são de que você já conheça essa história e seus personagens, então não vou perder tempo explicando a premissa. Hoje, tento entender o porquê de “Monstros S.A.”, um dos filmes aparentemente menos ambiciosos da já farta história da Pixar, é tão amado por tantos. E por mim também, é claro.
Meno ambicioso, pois, em meio à longas como toda a franquia “Toy Story”, ou “Divertida Mente”, ou “Ratatouille”, ou “Wall-E”, a impressão é que pouco tempo se perde aqui com discussões filosóficas, não que não estejam presentes, mas é preciso garimpá-las. Se Woody representa uma discussão existencial, Riley uma época de mudanças na vida de uma menina, Rémy toda e qualquer pessoa que já fora discriminada e Wall-E nosso próprio futuro como espécie, Mike e Sulley parecem empenhados em seguir as próprias vidas, quebrar alguns recordes, jogar o tal treco de volta.
Ainda assim, “Monstros S.A.” não deixa de ser ambicioso do ponto de vista criativo e apesar de não acreditar que analisando os aspectos técnicos seja a melhor forma de compreender a magia que coloquei no título, não posso não elogiar o cuidado monumental da equipe que, lá em 2001, conseguiu dar vida ao mundo mais inventivo da Pixar, rivalizado apenas por “Coco”. A vontade é de morar em Monstrópolis, que com todas as suas cores e criaturas diferentes não deixa de parecer um lugar aconchegante e convidativo, uma metrópole com sensação de lar e com instalações tão vivas que é como se, literalmente, Mike e Sulley vivessem entre seu apartamento e a fábrica. Em uma caminhada descontraída (para Sulley, irritada para Mike) de um lugar ao outro, crianças brincam na rua enquanto um olho gigantesco as olha por uma janela e um vendedor de frutas italiano - com quatro braços - faz malabarismo com frutas “exóticas”, até que passa pela dupla um dinossauro gigantesco que produz um som de galinha e chegando no trabalho um monstro de meleca limpa o próprio rastro no chão. Imagino se criar todas estas gags visuais - que fazem um excepcional trabalho de introdução de mundo - foi tão divertido quanto é assistí-las.
Esta excelência no visual tem papel importante em nos imergir na história, e prestem atenção redobrada nos detalhes dos cenários, como a fábrica parece intercalar ambientes grandiosos como o andar de susto (a cena onde todos chegam em câmera lenta é sensacional) com outros decadentes como os cantos não utilizados e até a sala de treinamento, construída sobre tábuas de madeira ou os próprios banheiros, com suas marcas de sujeira advindas do uso diário. E, é claro, os pequenos movimentos de cada personagem, como as poses de Randall, as gesticulações de Mike e o aparente tique do assistente de Randall.
A perfeição com que os monstros foram animados espanta quando percebemos que é um filme com 20 anos de idade, sendo que o pelo de Sulley se movimenta tão bem como poderia sem ser real, ao passo que a pele escamosa de Randall parece exalar veneno. Funcionando não apenas do ponto de vista visual, o design de cada personagem fala muito sobre suas personalidades: Sulley é um gigantesco urso de pelúcia, potencialmente assustador, mas carinhoso por natureza, enquanto Mike, sua mínima estatura e seu olho gigantesco gritam toda sua impertinência e teimosia (ele me lembra o Joe Pesci). Já Randall, como falei acima, tem na cor roxa e no sorriso traiçoeiro tudo que o personagem representa: um vilão invejoso do protagonista e que quer, por meios escusos, subir na empresa - um tipo bem comum no Brasil por sinal, assim, é claro, como - o chefe Waternoose, que com sua careca enrugada e suas sei lá quantas patas de caranguejo/aranha representa visualmente nosso político comum.
Além destes, a namorada de Mike, Celia, tem o mesmo chanel que era moda na época, mesmo que as pontas sejam cobras, enquanto a temível Roz é a como aquela professora que está no colégio a tempo o suficiente para não ter um pingo sequer de empatia por qualquer criança que dela se aproxime e ao associar sua idade avançada com uma lesma, temos outra piada que poderia ser de mal gosto não fosse a revelação da importância da personagem ao final. O Adorável Homem das Neves tem hippie escrito na testa e George Sanderson pode ser um simples alívio cômico, mas o famoso 23-19 funciona todas as vezes.
Pontuado com uma trilha sonora deliciosa curada por Randy Newman, indicado ao Oscar na categoria e vencedor pela canção “If I Didn’t Have You”, a abertura do longa, que conta com uma quantidade incontável de portas dançando ao som de Jazz, é talvez a mais elegante do estúdio, perdendo em qualidade apenas, é claro, para os famosos cinco minutos de “Up”. E é importante notar como o gênero, extremamente ligado à um estado mais reflexivo e contemplativo, é o som perfeito para a vida de Sulley, um solitário tão convicto que nem se permite pensar no assunto. Conformado com a vida que levava até o momento e por mais que Docter jamais o mostre em sua solidão, não é nada difícil o imaginar saindo mais cedo da festa da firma (ou nem indo), chegando em casa e colocando um Miles Davis pra tocar.
Perfeitamente pareado com Mike, um serzinho explosivo e convencido da própria grandeza - sua felicidade em se ver por meio segundo na TV é comovente -, um parece complementar o outro melhor do que qualquer outra dupla do estúdio, pois se Sulley nos conquista pelo coração gigante, Mike é o favorito de muitos pelo carisma. E é claro que o azul bebê de um contrasta, mas se complementa no verde limão do outro, não sei nem bem o porquê, mas é uma composição que funciona. Mas é claro que, por mais que os dois funcionem juntos, quem rouba a cena é a pequena Boo, uma menininha que nunca descobrimos o nome e que consegue conquistar o coração de Mike, Sulley, e de todos os seres humanos que o tem e assistem ao filme.
Sem falar praticamente nenhuma palavra além de Gatinho e Mike Wazowski, a forma como Boo enxerga aquele mundo, que para ela deveria ser assustador, é o principal motivo de todos amarmos tanto essa produção e, aqui, me despeço dos aspectos técnicos em busca de uma abordagem mais humana para compreender a tal magia de “Monstros S.A.”.
Pense bem, este mundo povoado por criaturas, em tese assustadoras, é movido a gritos, como se a única forma de energia que possuem viesse do medo de uma espécie que, simplesmente, não compreendem e, por conta disso, temem. Apenas com essa premissa, e colocando a personagem de Boo como peça central, é possível traçar inúmeros paralelos com nossa própria realidade: nós seres humanos abusamos de diversas outras espécies mesmo com opções menos prejudiciais; ainda utilizamos petróleo, um material poluente e que provocou incontáveis guerras ao redor do mundo, ao invés da fonte inesgotável de energia que ilumina nosso planeta; discriminamos outros seres humanos apenas por serem diferentes, tratando negros como inferiores, homossexuais como doentes e pertencentes a outras crenças como ignorantes. E caso ache que estou exagerando, basta observar filmes futuros da empresa como “Ratatouille” e “Wall-E” para perceber que estes se tornariam temas recorrentes em suas produções.
Sulley teme Boo no começo, lentamente se afeiçoa por ela e, no final, chega a colocar a amizade com Mike em risco por conta disso. Nesse sentido, “Monstros S.A.” enriquece sua prequência, ao mostrar que Mike, uma vez discriminado por “não ser assustador”, acaba reproduzindo o mesmo tipo de comportamento, se redimindo no final, ao provar que fez de tudo para que o amigo visse Boo uma última vez. Percebam, também, como Waternoose sabe que crianças nunca ofereceram qualquer risco ao mundo dos monstros, mas que revelar isso colocaria em risco o monopólio que constr… recebeu da família. E é lógico que as risadas seriam muito mais frutíferas para o mundo dos monstros, pois o medo nunca será a resposta certa para nenhuma questão envolvendo a criação de nossas crianças.
Boo é uma personagem especial, pois consegue ver a beleza em todas estas criaturas que assustam crianças como ela para ganhar a vida. Se Randall a assusta é porque uma vez o fez, e não porque ele aparenta ser uma criatura medonha - Mike é tão medonho como ele, por exemplo. E caso não fosse claro, as portas que servem como simbologia principal do filme significam uma infinidade de coisas: ao entrar na sua pela última vez, Boo não apenas volta para casa, mas faz algo que todos nós temos de fazer um dia, superar os monstros em nosso armários e, como Mike diz a ela, crescer. Pois por mais incrível que seja a infância, onde uma simples porta pode se tornar uma entrada para um mundo extraordinário, um dia ela, inevitavelmente, acaba.
Justamente por isso, filmes como “Monstros S.A.” existem, para, ao menos, nos lembrar que um dia esta magia existiu e se você tem dificuldade de se conectar com ela - e com o filme em si - depois de adulto, de repente precisa reabrir algumas das portas que fechou nessa linda, divertida e, as vezes, assustadora jornada que entendemos por vida.
Ps.: A teoria de que Boo seria a bruxa de “Valente” e de que ela continua procurando por Sulley por todo o Pixarverse é, de longe, a minha favorita e torna o adeus dos dois em uma cena ainda mais comovente. E olhem o olhar desse urso, mais expressivo que muitos atores de pele e osso.
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