Beyond | Marjane e Kaguya

Se alguém conversar comigo tempo o suficiente, pode ser que descubram um ser um tanto intolerante com uma série de coisas. Mas, diferentemente de muitos outros, não faço qualquer questão de esconder minha intolerância com estas tais coisas, principalmente quando julgo ter entendimento o suficiente da vida e da sociedade para condena-las.

Em um artigo que inicialmente seria a crítica do extraordinário “A Princesa Kaguya”, outra obra prima dos Studio Ghibli (que repito, são melhores do que a Disney e tão bons quanto a Pixar), percebi que não poderia falar exclusivamente deste sem trazer outra animação praticamente perfeita que assisti recentemente, o iraniano “Persépolis”.

O primeiro é uma adaptação de um conto de mais de mil anos, o segundo a adaptação de uma obra contemporânea. Em suas essências, a mesma história sobre duas meninas que, vivendo em meio à uma sociedade desconjunta e uma cultura retrógrada, têm suas vidas marcadas pela dor, repressão e perda.

Logo, como um homem nascido em um Brasil onde, ao menos, não temos uma cultura que subjuga “descaradamente” (dê atenção para as três grifadas na palavra) o papel da mulher na sociedade, jamais poderia falar sobre estes dois filmes sem comentar sobre como não consigo, e jamais serei capaz, de sentir na pele a mesma dor que ambas as meninas e tantas outras sentem. Minha forma de mostrar que simpatizo com sua dor é pelas palavras, e espero que ajudem a qualquer pessoa que ler este texto e que, ao terminar de assistir seus respectivos filmes, se sintam como eu.


Inexplicavelmente perdendo o Oscar de Melhor Animação para “Operação Big Hero”, “O Conto da Princesa Kaguya” é a produção mais cara da história do Japão (cerca de 50 milhões de dólares) e curiosamente parece ser a obra menos detalhista dos Studio Ghibli. Com um estilo de animação que lembra os rabiscos com giz das crianças mais talentosas (quer dizer, super-dotadas), poucas vezes me senti tão transportado para um mundo “fictício”, onde a simplicidade dos traços parece ser um dos principais motivos de você se importar tanto com os personagens.

O outro, é claro, reside na narrativa: logo em sua primeira cena, O Cortador de Bambu (nome original da obra e única nomenclatura dada ao senhorzinho) encontra uma pequena criatura dentro de um bambu que se transforma em um bebê diante de seus olhos. Sua primeira reação é agradecer aos céus por ter lhe dado esta benção e é possível ver a gratidão e felicidade incontida em seu rosto. Ao mostrá-la a sua esposa, a mesma responde dando o seio a criança que começa a crescer instantaneamente em seus braços. Os dois jamais questionam sua origem ou sua peculiaridade, apenas a abraçam como uma filha que nunca tiveram e, por mais que suas visões acerca de seu futuro difiram durante a projeção, jamais nos questionamos de seu inestimável apreço por ela.

Escrito e dirigido por Isao Takahata, o cineasta consegue algo raro: captar com delicadeza toda a dor reprimida da menina que protagoniza a história.

Perdendo o Oscar de Melhor Animação para o também digno “Ratatouille” (eu honestamente não sei qual filme escolheria), “Persépolis” é escrito e dirigido por Marjane Satrapi, se baseando em sua própria auto-biografia, inicialmente lançada como uma novela gráfica. Animado quase que inteiramente em preto e branco e com traços que poderiam facilmente remeter aos primórdios das animações, o longa não é tão imersivo apenas porque Marjane jamais nos convida a adentrar aquele mundo de lembranças dolorosas, onde uma infância feliz e livre é sucedida por uma adolescência reprimida fisicamente em sua terra natal e emocionalmente em sua tentativa de viver na Austria.

Se passando no estopim da guerra entre o Irã e o Iraque, sentimos não apenas por Marjane, mas por todos a sua volta. Seu pai é um homem honrado e orgulhoso da devoção da filha para a causa, enquanto sua mãe, com apenas quatro traços a mais no rosto, passa toda a preocupação que tem em ter uma filha mulher na atual situação do país. Porém, a cena de cortar o coração não é nem o adeus que dão a ela pela primeira vez, mas quando seu tio, preso e prestes a ser executado, tem direito a uma única visita e a chama, ainda menina, para a cela. Lá ele a entrega uma escultura de cisne, feita de migalhas de pão. É tudo que ele poderia fazer naquele momento, e ela entende isso.

Os dois filmes conversam diretamente quando abordam as estruturas culturais em volta das duas protagonistas: o pai de Kaguya tenta encontrar um marido para ela e, por mais absurda que seja a situação (são todos homens velhos e, vários deles, com mais de uma mulher), fica claro que o faz com as melhores das intenções dado o mundo onde ele próprio fora criado, mostrando menos interesse em um cargo na corte do que no bem estar da filha. O que, é claro, não diminui o sofrimento da mesma que, em uma cena necessariamente desconfortável, não pode participar da própria festa de celebração de seu novo nome, sendo que a mera ideia de que vários homens confrontam seu pai para vê-la (ou muito mais do que isso) soa como uma invasão tão forte que a mesma foge, ao menos em seus pensamentos. Já Marjane se vê obrigada a usar a burca (assim como Kaguya e seus robes), enquanto tem de se casar com um namorado apenas para poder andar com ele na rua. Não é preciso dizer que os dois se separam rapidamente. Por outro lado, seus pais fazem de tudo para apoiá-la, mesmo que o regime os impeça de realmente conseguir.

Mas são, é claro, as duas pequenas protagonistas que vemos crescer diante de nossos olhos que tornam as próprias histórias em dois dos trabalhos mais importantes destes últimos 20 anos.

A pequena menina advinda do bambu recebe a alcunha de princesa e o nome de Kaguya e é consideravelmente mais feliz correndo livre pelos campos com seus amigos do que quando seu pai a leva para uma mansão, para aprender a ser uma princesa digna. Sua história se torna ainda mais trágica quando descobrimos que seu tempo na Terra era limitado, pois, como um ser divino (a mitologia em sua volta pode ser encontrada facilmente na internet), tem de retornar à Lua e abdicar de suas memórias no mundo mortal. Na última cena, ela vira para trás e chora. Por qualquer motivo, não explicado a nós, Kaguya manteve aquelas memórias o que, de certa forma, se torna ainda mais doloroso pois além de ter que se despedir daqueles que ama, sabe que não viveu a vida da forma como queria ter vivido.

A pequena Marjane, revolucionária por natureza, tem de entender desde cedo o perigo que corre, e tem constantes desvios de seu próprio comportamento que mostram como esta carrega os efeitos infligidos pelo lugar onde cresceu. Em uma cena, ela acusa um homem de dizer coisas impróprias a ela - ele havia “apenas olhado” para sua figura encapuzada da cabeça aos pés - para a polícia, afim de que não a levem com eles, castigando o inocente ao invés disso. Uma atitude deplorável, mas imposta pelo medo de quem viu diversos amigos e parentes morrerem nas mãos dos mesmos policiais. Ao final Marjane não consegue superar por completo estas cicatrizes de uma vida que, provavelmente, nenhum de nós no Brasil conhece, sendo que uma espécie de resolução parece ter vindo apenas na forma de seu livro e filme.

Ambos os longas terminam com finais difíceis, onde suas protagonistas parecem entender a vida que vivem, mesmo que jamais a aceitem. A dor em seus olhares, separados por países e culturas distintas, além de contextos com mais de mil anos de diferença, parece exatamente a mesma. São duas das melhores animações já feitas na história do cinema e comprovam que, em várias partes do mundo, ao menos metade da população sofre do mesmo mal: culturas retrógradas, machismo estrutural, ignorância e misoginia passadas de geração a geração, e que não podemos temer em condenar.

Ambas tentaram lutar contra isso. Nenhuma conseguiu vencer. Ainda.

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