Crítica | As Bicicletas de Belleville
O ato de assistir a um filme com o intuito de escrever sobre ele depois, ao menos para mim, envolve diferentes estados ao final de cada projeção, especialmente quando falamos de grandes filmes. Na maioria das vezes preciso de um tempo para decidir se o que assisti merece esta alcunha, popularizada por Roger Ebert, talvez (Great, no caso).
No caso de “As Bicicletas de Belleville”, não precisei de mais de quarenta minutos para perceber que estava assistindo a algo especial.
O primeiro filme de Sylvain Chomet, cineasta mais do que talentoso e que jamais atingiu o sucesso merecido - por mais entendível que isto seja vide a natureza de seus projetos -, o longa de apenas 80 minutos nos mostra a vida de uma família de dois, composta pela diminuta Madame Souza (portuguesa, não brasileira, caso estejam se perguntando) e seu neto órfão, Champion. Preocupada com a melancolia infindável do neto, ela tenta alegrá-lo com um piano, um cachorro e, finalmente, com uma bicicleta, a qual se torna seu instrumento de trabalho. E não irei revelar mais nada da trama, pois o impacto do filme será muito maior desta forma.
Animado de forma bizarra, os personagens possuem traços mais do que exagerados: as panturrilhas gigantes de Champion, o barrigão de seu cachorro, a quadradeza dos homens da máfia. Este visual esquisito mais do que combina com a palheta de cores enjoada, centrada em um amarelo advindo de poluição e de um marrom quase morto e, por pouco, acaba ofuscando o fascinante trabalho de construção de mundo, detalhista e repleto de camadas que vão além do que o olhar pode captar a primeira vista. Ainda assim e por tudo isso, é fácil entender o motivo de muitos evitarem o longa. Alie isso ao fato de não termos praticamente nenhum diálogo e a narrativa ser dotada de um grau inexplicável de surrealismo e o filme repele instantemente aqueles acostumados com Pixar, Disney e, em seus dias mais selvagens, Ghibli.
Porém, no centro de toda esta estranheza está uma linda e tocante história sobre a devoção de uma mãe, que quase me fez chorar em sua busca pelo filho, em uma cena pontuada com uma grandiosa trilha sonora que apenas amplia a magnitude da tarefa em suas mãos - realçada também pelo pedalinho no qual cruza o mar. E dentro de sua estranheza, o filme ainda acha momentos genuinamente “fofos”, além de fazer rir pelo absurdismo de diversas de suas sequências, principalmente aquelas envolvendo o cachorro Bruno. Este, por sua vez, não é menos devoto do que a Madame Souza, e seu trauma de trens é particularmente fascinante - assim como o fato de seus sonhos serem, horas, em preto e branco.
Fazendo comentários estéticos sobre o futuro da humanidade que “Wall-E” ecoaria anos depois, é possível traçar um paralelo entre a decadência da arte e das artistas (as trigêmeas do título original) e a crescente falta de empatia por parte dos magnatas, que se divertem mais com o sofrimento daqueles que julgam inferiores - estes cegos pela mesmice e conformados com a própria miséria - do que com uma manifestação artística de qualquer forma. E nisso, é claro, entram as três velhinhas que surgem como heroínas tão estoicas como a Madame Souza, dispostas a colocar as vidas em risco por uma pessoa que as conquistou com, é claro, sua música.
Atingindo momentos de tensão inesperados, desde o drama de Bruno esperando por comida à toda a trama envolvendo Champion, meu único apontamento é sobre o final que, por mais gratificante que seja, adota um tom cômico em excesso, ao menos para mim. Mas isso não diminui de maneira nenhuma meu apreço pela obra, sendo que tal final é claramente advindo de uma decisão artística que, de uma forma ou de outra, apenas confirma que o que está na superfície não importa e que esta pequena e esquisita animação é, em seu coração, uma das mais bonitas que você irá assistir.