Crítica | Ratatouille

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Talvez o trunfo mais impressionante da invejável filmografia da Pixar esteja em “Ratatouille”.

E não falo do filme em si, o qual vou comentar logo logo, mas sim de um feito mais do que curioso na história das animações. De Mickey à Jerry, de Stuart Little à Remy, como amamos tantas versões animadas de um dos animais mais repudiados de todos, é algo difícil de se explicar. Porém, a oitava produção da Pixar vai além, colocando um rato para cozinhar em um restaurante gourmet, rechaçando a ideia de torná-lo “fofo” e ainda nos deixando com água na boca ao vermos suas criações na cozinha.

Já aí, é preciso elogiar o minucioso trabalho de animação, que contou com ajuda de experts em ratos e da criação de ambientes (aparentemente saudáveis) para se analisar os bichinhos para que, assim, os animadores pudessem conhecer melhor seus movimentos. Uma das maiores virtudes do longa é justamente manter os traços dos animais, sendo que assim Remy tem de conquistar o público graças a sua personalidade e talento, e não por conta de sua aparência. Do ponto de vista dos pratos vistos no restaurante Gusteau, a equipe consegue o essencial em um filme sobre culinária: com que possamos sentir o cheiro, a textura e o gosto dos pratos, e destaco especialmente a cena onde Colette amassa, de leve, um pão francês (cacetinho se você for do Rio Grande do Sul, como eu) e podemos ouvir o som de sua crocância. Quanto aos cenários, Paris é reconstruída de forma apaixonante, mas sem jamais deixar de evidenciar um aspecto menos comentado da cidade: a sujeira de suas ruas que acaba se tornando, é claro, ambiente perfeito para os roedores transitarem. A fotografia, por sua vez, é aconchegante graças aos tons achocolatados e cores quentes, que transformam tanto cozinha, como restaurante, em lugares convidativos.

Povoado com personagens não menos bem pensados do ponto de vista técnico, percebam como cada um recebe traços que condizem com suas personalidades: desde a magreza e ruivos desgrenhados de Linguini, ao olhar carrancudo e fechado de Colette, personagem que representa o quão difícil é aquele meio (e outros, mais abaixo) para uma mulher. Já Skinner, cuja voz do fantástico Ian Holm e seus 60 centímetros de altura (uma brincadeira metalinguística com o Hobbit, de repente) figura como um vilão divertido pela impertinência e personalidade explosiva. Porém são Remy e o crítico gastronômico, Anton Ego, que trazem o principal tema do filme e a razão pelo qual ele se torna tão especial.

Afinal, “Ratatouille” é, acima de tudo, sobre arte.

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Dotado de uma aparência draculesca - sua sala é um caixão, horas -, Ego representa um dos tipos mais odiados pelos consumidores: o profissional que diz que seus gostos são, utilizando uma palavra que serve para qualquer meio, intragáveis. Assim como o próprio diz à Linguini, em um diálogo que não revela apenas sua personalidade, mas toda a discussão que o filme se propõe a trazer. No excelente texto de Pablo Villaça, ele comenta sobre como Ego enxerga a famosa frase de Gusteau que “qualquer um pode cozinhar”, apenas para descobrir, graças à Remy, o verdadeiro significado desta frase, o que confere valor não apenas ao personagem principal por ganhar o respeito de seu maior “adversário”, mas à própria natureza do bom crítico que, movido pelo amor que tem sobre a forma de arte que se propõe a estudar, reconhece quando estava errado e se permite mudar de opinião.

O “qualquer um” que Gusteau se refere não significa literalmente qualquer um, sendo que seu próprio filho não parece ter qualquer talento para a culinária, mas sim que este talento não vem de sangue, status, cor ou espécie, colocando Remy como peça central de um filme que ainda faz paralelos profundos e filosóficos com o preconceito e a discriminacao. Ao adotar um estilo de vida diferente dos seus, Remy é questionado por estes, e rechaçado por aqueles deste novo meio. Confuso e indeciso entre suas origens e seus sonhos, o ratinho jamais pensa em abandonar nenhum dos dois, mas ainda assim acaba sucumbindo à raiva e à frustração por um breve momento, mostrando que jamais fora perfeito, respondendo este momento de recaída no ato final, onde lidera e prova que seus companheiros de espécie são tão dignos da cozinha quanto os humanos.

Por conta deste arco perfeitamente amarrado, a própria Colette ganha ainda mais peso na narrativa, pois ao colocar a culinária como a representação de outros meios de arte, logo lembramos como a grande maioria deles é nocivo à mulher, desde a música (aconselho que assistam “Beyond The Lights”), à pintura (demando que assistam à “Retrato de Uma Jovem Em Chamas”) ao cinema (ordeno que contem quantas diretoras já foram indicadas no Oscar).

Adorável do início ao fim e com vários momentos de tensão tanto para o público infantil como para o público adulto, esta é mais uma obra prima animada de Brad Bird (depois de “O Gigante de Ferro” e “Os Incríveis”, cuja mensagem ressoa fortemente aqui) que, definitivamente, deveria expandir sua filmografia como diretor (ele tem apenas seis filmes!). Aqui ele cria um mundo fascinante e quase fantástico, mesmo que ainda calcado na realidade, que reflete tanto o lado bom, como o ruim da natureza e da história humana, além de nos lembrar que enquanto alguns de nós nos sentamos confortáveis, outros tem de derrubar imposições desumanas apenas para ter uma chance de seguirem seus sonhos.

Mais ainda uma análise do artista e do que o move, a frase final de Ego à Remy é algo que, constantemente, nos pegamos esperando que aconteça. Comermos aquela comida, ou ouvirmos aquela música, ou assistirmos aquele filme que vai nos fazer sentir algo que, com sorte, só sentimos poucas vezes na vida e que, nestas poucas vezes, vem da mais absoluta surpresa.

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