Crítica | O Açougueiro
SUSPENSE BRESSONIANO
Claude Chabrol usa de suas referências para encontrar o que busca em seu Cinema
A carreira de Claude Chabrol é uma das mais prolíficas entre os diretores da Nouvelle Vague e, tal qual seus contemporâneos, pode ser dividida em diferentes fases.
Minha favorita - ao menos até agora e com muitos filmes para assistir - é essa do final dos anos 60 onde, na maioria das vezes, filma sua esposa Stéphane Audran em uma espécie de cenário Bressoniano manchado por delírios Hitchcockianos, que também conversam com o surgimento do Giallo e do surrealismo de Buñuel.
Se seus primeiros filmes se assemelhavam mais à tendencias do movimento Francês ao se afastar de uma narrativa linear, se desenvolvendo por meio de sequências que mais formam um mosaico de sensações e intenções, e geralmente as ressignificando no final com um mergulho profundo no vazio existencial dos melhores Bresson, essa fase que migra décadas é marcada por uma abordagem acessível de um modo estranho, alocando aqueles mesmos elementos abrasivos em espaços seguros para que os filmes possam funcionar em diferentes camadas e para diferentes espectadores.
Em As Corças (1968) ele assume uma dimensão surrealista de maneira visual e metafórica, conversando com o Cinema de Walter Hugo Khouri, ambos estudantes mais sombrios de Hitchcock e que acreditavam na importância de conversar com o público com a linguagem.
Já em O Açougueiro, o diretor parece encontrar o equilíbrio perfeito entre o suspense do Britânico com o mistério mundano do Francês. Pois o vilarejo onde Hélène vive como uma reclusa professora relembra os cantos isolados onde Bresson mais chegava perto de encontrar o elemento central de seu Cinema: é como se a vida naquela pequena cidade, parada no tempo, escondesse em suas entranhas uma resposta transcendental para a ansiedade Bressonica. Seja ela um silêncio desesperador, ou algo a mais… que ele aparentemente nunca encontrou.
Em certo momento, Hélène medita, tentando conciliar consigo mesma os acontecimentos ao seu redor, esperando que o tempo leve a si o problema que precisa contornar.
Pois o que ocorre naquele lugar é a mancha Hitchcockiana, o assassinato que desequilibra as forças que mantém o modo de vida confortável de Hélène. Ela está lá para fugir dos perigos de uma vida “comum”, recusando o amor e o sexo, vivendo uma vida de dia a dia, mas quando sobe um morro em uma cena idílica com seus alunos, seu modo de vida é manchado de vermelho e, como apenas poderia ser, um isqueiro entrega a resposta para o mistério proposto pelo filme. Que, de certo modo, conversa também com Terror na Ópera (1987), de Argento, mas onde sua protagonista jamais consegue se elevar para além do mundo civilizado, nunca encontrando o equilíbrio na natureza que tanto procurava - mesmo que esse equilíbrio venha por um possível declínio patológico.
Em uma cena tão bela como sombriamente desoladora, Hélène se senta em meio a escuridão, à beira do lago - novamente, conversando com Khouri. Uma luz quente, diegeticamente inexistente, ilumina seu rosto transtornado, enquanto ela tenta refletir e conceber tudo que lhe aconteceu. E então, o final parece fazer mais sentido do que uma mera bizarrice (que tende a atrair os pervertidos que Fincher diz existir em cada um de nós), é ela talvez percebendo que não há resposta no mundo, logo, tem de voltar à única relação humana que ainda tinha.
O impressionante é justamente como Chabrol consegue construir um filme tão denso e passivo-agressivo de maneira tão comercial, a modo que o suspense e o jogo de descobertas e reviravoltas impeçam o tempo de cada sequência ser devidamente sentido. O contraste aqui é importante tanto nas referências (Bresson e Hitchcock tinham soluções absurdamente contrárias para a inquietação cotidiana), como na linguagem direta: planos abertos que estabelecem o local e sua lógica em cena, e outros fechados nos rostos de seus atores. O corpo de Audran desfila e nós acompanhamos. Se há uma janela, algo nela irá aparecer. É importante fechar as portas, pois elas continuam existindo mesmo fora da tela.
Mesmo sem filmar qualquer “ação”, é como se o mundo em standby de Hélène fosse se tornando cada vez mais inseguro, mais agressivo, como se o mundano se confundisse com uma paranoia quase irreal de sua protagonista, em um filme que trabalha na dimensão física, mas reflete a psicológica. E Audran assimila tudo em uma composição austera, que tenta sempre pensar antes de reagir emocionalmente, que tenta manter a calma que se isolou para buscar.
Por isso a cena do lago é tão poderosa: a única maneira de ser vista, em sua beleza exótica e misteriosa, é com a luz quente em seu rosto, mas, de seu ponto de vista, está imersa na escuridão.