Crítica | Excitação (1977)
PARANOIA TECNOLÓGICA
Jean Garret se apropria do Cinema de gênero para criar algo essencialmente Brasileiro
Talvez a maior dificuldade para o espectador médio, quando deparado com a verdade do Cinema Brasileiro, seja compreender como os elementos que “aprendeu” com o Cinema dos Estados Unidos existem aqui, mas de uma forma tão adaptada que parecem uma metamorfose.
Filmes mal restaurados, conservados, com áudios estourados e encenações “caseiras", imagens menos polidas aqui nos anos 80 que 40 anos antes no resto do mundo. Cinema Novo, Marginal, Pornochanchada, Boca do Lixo. O ridículo como linguagem, a superfície da imagem como um mero veículo e não um fim.
A grandeza de um filme como Excitação pode, logo, ser melhor comparada aos Giallos de Dario Argento, com suas dublagens posteriores e seu apreço vulgar pelo escatológico - dos cortes, às reações, ao sangue falso. Códigos visuais reutilizados, reciclados e, quando sempre, surrados. O Cinema que chega aqui pulsa com vida, mas deteriorado por uma viagem cultural que vai das produções milionárias a uma câmera na mão e uma ideia na cabeça.
Se no futebol somos a Seleção do Terceiro Mundo, a única que ostenta jogadores miscigenados sem que isso seja um mero fruto de colonização e aproveitamento, no Cinema somos também o auge dos marginalizados, o país que melhor se sai com pouco, que mais cria com as sobras que lhe é dado.
E assim, Jean Garret, nascido Português, mas dono de um Cinema essencialmente Brasileiro, faz um filme que premedita Lynch e Cronenberg, uma obra metalinguística e tão sofisticada no que se propõe que os 480p nos quais a assisti de graça no YouTube jamais seriam capazez de afetar.
Em um comentário fascinante no LetterBoxD, o crítico Tarcisio Sampaio comenta sobre como o estado de conservação de um filme pode afetar a experiência, e como assistir Excitação (na mesma forma que eu, em uma cópia mal conservada do Canal Brasil com som comprimido e imagens de baixa resolução) proporciona a sensação de estar descobrindo um filme perdido na madrugada da TV aberta - algo indiscutivelmente brasileiro. O que se soma à experiência diegetica, onde não se sabe o que é real, sonho ou ilusão.
AVANÇO TECNOLÓGICO, CRISE PATOLÓGICA
Gosto muito como as relações do filme começam a se revelar em uma guerra velada de patologias. Garret mistura a involuntária de sua protagonista, com os atos patologicamente duvidosos daqueles ao seu redor. Menos um filme sobre encenação (eles trabalham para enganar ela) do que de enganação (deles com eles mesmos, deles com os espectadores, do filme com os espectadores), seja ela uma condição inevitável ou apenas um recurso maquiavélico.
Propondo um jogo de adaptações, que torna brasileira uma cena de um chuveiro pegando fogo, e que prevê o Horror Norte-Americano oitentista, Garret faz um filme precoce sobre a crise tecnológica, a desunião entre homem e máquina, e sua conjunta metamorfose em um ser desprovido de humanidade. Nesse sentido, é interessante observar como a montagem afeta o início do filme, sugerindo um avançar no tempo pouco orgânico, picotado, e que vai de um gesto desajeitado a outro (do sexo não consumado, às apresentações das vizinhas). É quase como se Videodrome (1983) invadisse O Som Ao Redor (2013) por meio da fita de Estrada Perdida (1997), e seus personagens lidam com isso perdendo cada vez mais a noção de uma vida humana normal.
Cada personagem parece estar inerentemente ligado a um aspecto diferente dessa mistura de patologias e tecnologias: o homem computador é frio e calculista, a dona de casa herdeira é assombrada pelos eletrodomésticos, a prima promiscua tem tesão em motos, carros e lanchas. Recursos simples de operar, desde que com imaginação suficiente para fazer com que um toca discos seja o equivalente a uma aparição.
Impressiona justamente como, apesar de ser um filme propositalmente caseiro - as aparições fantasmas são dignas de uma produção de bolso -, não deixa de presar por suas composições, abusando da mise-en-scène pictórica de Jean Garret, e do talento de Carlos Reichenbach, que aqui atua como diretor de fotografia. Cômodos mostrados em sua integridade, arquitetados e organizados meticulosamente, filmados por uma câmera que horas parece uma testemunha estática, outras parece ser uma participante ativa na ação (da sincronia ao seguir a protagonista, ao POV do assassinato). É uma decupagem complexa e densa, que propõe um diálogo interminável de referências, conceituais e visuais, de Cinemas e Cinemas.
Algo que se estende ao jogo de olhares, onde Garret sugere que todos os personagens podem tomar o ponto de vista principal, uma solução menos comum no Giallo e que me soa bem pós-moderna, de um mundo onde a vigilância é permanente. Um diálogo revelado por um zoom impossível parece acabar nos olhos do pescador, o plano/contraplano parece ser exclusividade da esposa (com os agudos metálicos se tornando um código especificamente divertido), os olhares do marido referem a sua posição de diretor dos acontecimentos, observando-os enquanto acontecem. Remetendo ao brilhante O Açougueiro (1970), de Chabrol, mesmo em uma praia tão isolada, é como se olhares e testemunhas estivessem sempre a espreita - o que potencializa, também, o elemento sexual do filme, uma lógica de repressão e dominância que, despida o suficiente, tem em seu centro as frustrações sexuais, de uma dona de casa que precisa de contato humano, mas é rodeada por máquinas.
O que vemos em Excitação é um mundo que avança de maneira rápida demais para que possamos acompanhá-lo com nossa sanidade intacta. Mesmo estando próximo de completar 50 anos, parece um filme que, se refeito sob a ótica da geração atual, seria igualmente revolucionário.