Crítica | Opera
o “olhar” de dario argento
Apesar da carreira lendária, nenhum filme expande tanto o conceito do Cinema do diretor como Ópera
Dario Argento é daqueles diretores que existe em uma dimensão curiosa. Seu Cinema certamente não é mais tão bem aceito pelas massas - ensinadas que filmes de terror com sustos, obviedades e excesso de sangue são ruins - mesmo que seja feito com tamanha simplicidade que se torna de universal acesso.
Pelo contrário, são os cinéfilos que não se importam em achar beleza e fascínio em filmes de Slow Cinema, e que preferem horas depressivas de Hong Sang-Soo à alegria fabricada da Marvel, que encontram a genialidade em suas tramas absurdas, a poesia em suas matanças e, principalmente, a diversão em sua própria diversão com a própria arte.
Assim, Argento, que poderia muito bem ser uma das muitas portas de entrada para o Cinema, acaba se tornando uma descoberta que, infelizmente, poucos fazem. E boa sorte em convencer as pessoas a assistir um filme sobre um assassino que prega os olhos das vítimas sem que isso soe ridículo demais.
CINEMA DO OLHO
Conforme estudo, cada vez mais o artigo de Luiz Carlos Oliveira Jr. faz sentido.
Ao propor que Vertigo seria o ponto alto e central de todo o Cinema, e de que todos os filmes depois carregam consigo algo da obra prima de Alfred Hitchcock, o autor faz algo próximo de uma lavagem cerebral ou, ao menos, uma re-educação do olhar. Assim como os fãs de filmes de herói passam horas procurando easter eggs, aqueles catequizados pelo artigo de Luiz Carlos fazem malabarismos para tentar conectar todo e qualquer filme com Vertigo.
Isso é, não que seja difícil. Apesar de atingir seu ápice nos anos 60, a influência de Vertigo seguiu visível no trabalho de diversos diretores: Antonioni, Khouri, De Palma, Lynch, Fincher, Kurosawa, Shyamalan, Petzold, pra citar alguns. Porém, acho que nenhum experimentou tanto, e chegou tão perto do Cinema do Olhar como Argento em Ópera, uma obra prima de escatologia e que foca não só no ato de olhar, mas nos olhos em si.
Como teoriza Philippe Leão constantemente, o Cinema Moderno sequestra e viola o olhar do espectador, mas aqui é mais como se a experiência fosse elevada à enésima potência. Desde o assassino que prega os olhos da protagonista e a faz assistir suas mortes, às mais diversas maneiras que os olhos são mutilados e focados durante a obra: uma morte por uma fechadura, por um vidro transparente, um olho arrancado por corvos, um binóculo voyeurista, colírios que deixam Betty temporariamente cega, a venda que a impede, enfim, de ver a própria morte.
E ao melhor estilo Vertigo, a mise-en-scène assume esse caráter ao transformar a vida de Betty em uma eterna paranoia. Quando ela caminha de pijama na rua não é como se as pessoas necessariamente prestassem atenção, mas a sensação que ela sente - e nós também - é de que alguém a observa. A câmera que a segue em casa até oferece um efeito mais óbvio, assim como os cômodos e cantos escuros, analogias tanto para o Horror de superfícies visíveis que Argento propõe (do medo, aos atos, ao sangue), mas também para a sensualidade forçada em uma atriz de 24 anos, mas que poderia muito bem ter 17. Ela quase pelada, em meio à um cômodo devidamente barroco, é quase uma afirmação de que cresceu o suficiente para atrair os olhares de todos, mas ainda não o suficiente para se entender como mulher - e a inveja que provoca em outras mulheres tanto por sua posição de destaque na companhia, como por sua beleza jovem, é outro mote potente.
CINEMA DA IMAGEM
Ao estabelecer essa ideia visual de maneira que se esbalda com a própria overdose de referências espirituais, Argento cultua também seu próprio Cinema. Apesar de nunca pisar de verdade em um Whodunit, a obviedade de seus roteiros nos faz desconfiar de tudo e de todos, tornando cada personagem um possível agente do caos. Não há imagem segura, desde os rostos mais conhecidos, às memórias confusas de Betty que relacionam seu presente com o assassinato da própria mãe, anos antes.
E assim como nos melhores Argentos, mas mais que em todos eles, é uma obviedade situacional impulsionada pela forma, mas que propõe investigações complexas, representadas por metáforas quase óbvias - como aponta Michel Gutwilen, Betty entrando no sistema de ventilação com uma versão mais nova sua é a própria Alice no País das Maravilhas (pelo menos a versão distorcida de Argento da história) -, mas que tornam a jornada de sobrevivência da personagem, também, em uma de descoberta.
Ao finalmente entender o porque daquelas coisas acontecerem com ela, e de fazer sentido com seu passado macabro, ela recorre à única coisa pura no mundo: a natureza. Indiferente e implacável, mas que não se dobra por patologias e obsessões, o ser como ser, uma violência pura e que retorna para o Clássico da ópera, rejeitando o caos provocado pelo Heavy Metal que dá som à todas as mortes.
CINEMA
Embora seja difícil escolher entre esse e Prelúdio Para Matar (1975), Ópera me parece o filme “mais completo” de Argento (pelo menos dos 10 que assisti). Não muito diferente de outros perfeccionistas, o diretor italiano passou a carreira recriando e remontando o mesmo filme (o que não quer dizer que seus projetos são repetitivos), talvez em busca de um resultado inatingível, mas que definitivamente gerou auges variados ao longo do caminho.
Difícil dizer que há qualquer coisa mais Cinema em seu Cinema que o momento chave onde um dos símbolos definidores do Horror - e remetente direto à sua maior inspiração -, e que carrega consigo tanto o legado do Cinema como da Natureza, revela a verdade que todos buscavam. Corvos, voando sobre a platéia, vemos por seus olhos que nunca esquecem (portanto, perfeitos) e encontramos a peça que faltava no quebra cabeça para a liberdade de Betty. Que, por sua vez, a atinge utilizando não uma arma feita pelo homem, mas uma pedra. Sua epifania no final é mal recebida por muitos, mas é justamente o que torna o filme uma experiência tão rica em todas as direções que se propõe.