Crítica | Pacto Sinistro

O Cinema de Atrações de Hitchcock

Pacto Sinistro é um dos filmes mais sádicos e espertos do Mestre do Suspense


De acordo com o próprio: George Méliès e Alice Guy-Blaché são influencias diretas em seu Cinema, e mesmo 40 anos após o auge do Cinema de Atrações, Hitchcock seguia homenageando-o.

Talvez raramente tão bem como em Pacto Sinistro, um filme que não bem emula visualmente, mas entende e evolui o conceito do que seria uma atração - esta que, no caso de Hitchcock, significa um assassinato.

E fazer pessoas entrarem em fila para ver um corpo era provavelmente o maior prazer na vida do homem, que não apenas gostava de sequestrar nosso olhar (algo que mais e mais ia tomando forma até o ápice em Vertigo), mas corromper nosso próprio senso de moral (a cena com a mulher na festa é praticamente uma representação direta disso). Aqui ele torna esse fascínio pelo macabro o mote central da obra, encontrando uma representação também direta no parque de diversões, onde a mais nova atração é o corpo da menina.

Na verdade é possível dizer que as referências começam antes disso.

Dois estranhos em um trem que chega à cidade, unidos pelo acaso de um esbarrão, na versão Hitchockiana de Brief Encounter. Aquele momento inclusive é o mais leve de toda a narrativa, uma conversa em plano/contraplano que estabelece a natureza dos dois homens: Bruno invadindo o espaço de Guy, que recua levemente mas mantém o sorriso no rosto - sempre gosto de relembrar a resposta oferecida por David Fincher (na voz de Martin Vanger) em Millenium: o medo de ofender pode ser maior que o medo da dor. Ali já nos perguntamos se aquele bom moço, um tenista mediano (que Woody Allen se apropriaria) preso em uma situação complicada, não seria corrompido pela eloquência do maluco que o aborda e que (acredito) a maioria de nós daríamos as costas, mas esperamos que… pelo menos algo aconteça.

Ou melhor, torcemos, antecipamos, adivinhamos. Quando Guy diz que não fuma e puxa o isqueiro, meu primeiro impulso foi analisar a contradição, mas Hitchcock se apropria dessa contradição e a reverte. O isqueiro tem papel importante, mas inverso: o de culpar um homem inocente, não de revelar um culpado, e também de simbolizar toda a relação do diretor com a imagem (e suas emoções e significados) acima da lógica. Seus objetos, como aponta Andrew Sarris, nunca são apenas adereços de uma mise-en-scène cinemática, mas a substância de seu Cinema. Objetos que corporificam os sentimentos e medos dos personagens, enquanto interagem entre si, em dramas entre dramas.

Assim Hitchcock mira não apenas com a câmera, mas com nossos olhos. Procuramos visualmente por pistas, mas desvendamos um quebra cabeças de acontecimentos ainda por acontecer, tentando encaixar o isqueiro como peça central.

Um MacGuffin que, como sempre, de pouco ou nada importa de verdade (para a trama em si, no caso). Quando Bruno parte para cumprir sua parte do pacto da tradução brasileira, as atenções são todas no jogo de sedução entre ele e Miriam - que denotam também o moralismo sexual tão debatido do diretor. Nela, o mesmo fascínio que dividimos, a curiosidade em algo claramente perigoso que termina por se provar fatal, como visto no celebrado plano dos óculos (que Eles Vivem expandiria) como as únicas testemunhas de seu assassinato, como se fossemos nós que pelos olhos de Miriam tivéssemos essa janela para o mundo de atrações que ele cria - este, um dos prazeres oferecidos por Hitchcock e que, novamente citando Sarris no mesmo artigo, fez sua reputação sofrer por dar prazeres demais às audiências do que é permitido em um “Cinema sério”.

OS LADOS DA ENCENAÇÃO

A atuação de Robert Walker é uma das grandes em um filme de Hitchcock, sendo conduzido quase como que por cordas invisíveis para integrar de maneira intrínseca a encenação, mas sempre com uma imprevisibilidade que parece desafiar as amarras de um diretor que chamou atores de gado. Assistí-lo é um prazer a parte, e talvez justamente por ele próprio não disfarçar quem é - aqui, um confronto ao moralismo, ao fazer com que seja a família de vítimas que tenha de planejar uma encenação, mesmo que para contar a verdade. A relação da interpretação de Walker com a vida real é um bônus sombrio, sendo que o ator, dono de uma vida turbulenta, morreu pouco depois do filme em um episódio de alcoolismo.

Se Hitchcock começou a fazer Vertigo muito antes, com Rebecca sendo possivelmente um ponto de virada na relação espectral dos personagens com a mise-en-scène, aqui como em outros filmes pré-Janela Indiscreta (as cenas no vagão e na sala de vidro já servem também como exercício) ele corta excessos a custo até mesmo de uma certa substância em subtexto, mas jamais consegue evitar com que a essência da mulher que o assombrou por toda a carreira seja esquecida. O reconhecimento de Miriam na irmã de Guy é uma fundação óbvia no cânone de seu mais celebrado filme, com o senso de presença indesejável e inevitável sendo ocupada pelo próprio Bruno - a cena da plateia do tênis, e a das escadarias, momentos mais do que referenciados em filmes futuros (It Follows usa as duas praticamente).

E claro, mesmo no jogo de tênis, em tese espontâneo e ditado pelos atletas, há a corrupção. Bruno, um jogador metódico, precisa se apressar, em uma cena entrecortada com o acaso quase salvador envolvendo o bueiro - este, um que rechaçamos imediatamente (mas que Woody Allen não!), afinal, se chegamos até aqui, queremos ver o circo pegar fogo.

O ato final de Pacto Sinistro, portanto, é a potencialização máxima desse conceito de atrações. Os quadros deixam de ser sugestivos como da primeira vez no local, e se tornam violados por uma quantidade caótica de pessoas e por uma edição que acompanha o movimento de atenções. Não são mais apenas Guy e Bruno, ou Bruno e Miriam, ou mesmo os olhares atentos e desconfiados de Anne, mas sim uma partida de tênis onde a bola é o isqueiro e a derrota significa a morte. O virtuosismo envolvendo a cena do carrossel é brilhante - acabo gostando menos das piadinhas ali, num filme e momento que não precisava delas justamente por trabalhar com esse sorriso nefasto o tempo todo -, mas mais ainda tudo o que representa.

Em um filme de Hitchcock, podemos estar todos torcendo para o mocinho, mas não nos incomodamos… ou melhor, esperamos ver ao menos algo que chame nossa atenção, corrompa nossa moral, e revele que nossa natureza não se distancia muito do homem que sequestra nossos olhares por prazer, o entregando de volta na mesma proporção.

Se não é um de seus melhores filmes, é só porque não faz questão de ser… ou porque o patamar é bem alto mesmo.

9.5

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