Crítica | Nosferatu (2024)

sem ar pra respirar

Refilmagem de Robert Eggers sufoca o mundo sob o estilo do diretor


Enfim, tudo se harmoniza nessa procura do ponto central, em que as aparências, e aquilo que chamamos de “natureza” (ou vergonha, ou morte), se reconciliam com o homem – procura semelhante à do alto romantismo alemão, e de um Rilke, e de um Eliot -, e que também é a câmera: colocada sempre no ponto exato, de modo que o mais leve deslocamento modifica todas as linhas do espaço e transtorna a face secreta do mundo e de seus deuses.
— JACQUES RIVETTE (1985)

No início de Senhorita Oyu (1951), filme de Kenji Mizoguchi que se encontra em algum lugar entre Murnau e Hitchcock, o nobre Shinnosuke é visitado pela família de Shizu, com o intuito de juntar os dois em matrimônio.

Com apenas quatro minutos, o diretor japonês exibe toda a destreza de um cinema que vinha se lapidando desde os anos mudos: com dois longos planos, o Mizoguchi traça o caminho de Shinnosuke até Shizu, até que este é então interrompido por um gesto mostrado tanto na composição da cena, como pela montagem. A câmera, como característica de seus filmes, se movimenta em relação a Shinnosuke com uma distância e sincronia que fica entre o indiferente e o impiedoso, pois quando encontra a comitiva de Shizu, Shinnosuke para, centralizado de costas: o mundo não gira em torno dele, mas se implode em sua iminente tragédia - uma que descobriremos como tal apenas ao fim da cena em questão. Com uma leve mudança de postura, podemos ver que uma bela mulher troca olhares com Shinnosuke. Mizoguchi então corta para um close da mulher, que vai de sua forma em perfil, ao seu olhar penetrante para o contracampo. Ali, vemos por Shinnosuke (vemos o que ele vê) mas também vemos Shinnosuke (e a maneira como a idealização encontra a materialização: será aquela bela mulher sua prometida?).

Se Mizoguchi seduz, é, de início, porque não procura seduzir; ele jamais se inclina para o lado do espectador: trata-se, aparentemente, do único dentre todos os cineastas japoneses a cantar exclusivamente em sua árvore genealógica (Yang Kwei Fei faz parte do repertório nacional, assim como o nosso Cid), e também do único a poder almejar à verdadeira universalidade, a do indivíduo.
— JACQUES RIVETTE (1958)

Poderia tratar-se de um momento trivial, de um simples olhar, de uma quebra de protocolo que transforma a frieza de um casamento combinado na possibilidade de uma paixão guiada. Mas, no meio daquele bosque, Shinnozuke se apaixona pela mulher errada: se trata da irmã de Shizu, a senhorita Oyu, que batiza o filme.

Para além da movimentação da câmera, do desencadeamento dos elementos que constituem a totalidade da mise-en-scène, há também um cuidado no contato entre homem e natureza, outra característica comum à Mizoguchi, principalmente a partir dos anos 50. O primeiro plano, afinal, vai da geometria característica da arquitetura japonesa ao emaranhado de árvores do bosque, que antes impediam a câmera de se relacionar diretamente com o corpo de Shinnosuke e agora adornam a imagem de Oyu.

Se uma diferença basilar entre Ozu e Mizoguchi reside no movimento (o primeiro quase não mexe a câmera), um ponto de encontro é como a modernidade e a natureza coexistem em uma não-harmonia, e como ambas são acessadas por meio dos personagens e de suas relações com a presença da câmera (Ozu a torna evidente pelas conversas em eixo, Mizoguchi pelo movimento). Inclusive, em dois momentos distintos, ainda nestes primeiros minutos, Mizoguchi chega a lembrar Ozu, tanto quando filma o espaço após os atores já terem o deixado, como quando voltamos à casa e vemos os atores à distância, enquadrados pela janela e rodeados de árvores, uma espécie de microcosmo isolado tão caro a Ozu.

Quando nos sentamos à mesa, percebemos então que o filme não é sobre Shinnosuke, mas sobre a Senhorita Oyu. Mizoguchi uma vez mais comunica isso com um movimento de câmera, que dessa vez se sincroniza de maneira quase sádica à reverência que a mesma faz, revelando sua natureza de serviçal da irmã. O plano então se dissolve em um outro dela própria, que termina igualmente com o vazio. Nessa sequência não vemos, por um segundo sequer, o rosto de Shinnosuke, e fica claro que o plano que inicia o filme com sua caminhada é, na verdade, sobre ela.

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Mizoguchi, o maior dos cineastas japoneses, conversa uma língua semelhante àquela proposta por F.W. Murnau, diretor do primeiro Nosferatu (1922) e possivelmente o grande nome do cinema alemão. Em termos de influência, é possível dizer inclusive que Murnau rivaliza com Griffith, pois seu impacto em diretores como John Ford foi tanto que se alastrou para além das referências diretas. Se um viu os filmes do outro, como sempre nesta época, é uma incógnita, mas é provável que Mizoguchi tenha entrado em contato com, ao menos, Aurora (1927), visto que filma muito próximo a ele tanto aqui como em Ugetsu (1953).

A língua que conversam, como propõe Jacques Rivette, é a da modulação. Esta que é, muito possivelmente, a maior carência do cinema contemporâneo e que pode ser observada em sua totalidade na refilmagem de Nosferatu por Robert Eggers.


UMA ARTE SEM ONDAS

O crítico Philippe Leão constantemente repete sua crença de que, no cinema contemporâneo, não há espaço para movimentos por, entre outros motivos, conta da velocidade com que as coisas acontecem. Afirmação que discordo a depender de como se encara um movimento, pois mesmo que nestes últimos tantos anos manifestos ou mesmo grupos de crítico-cineastas com propósitos alinhados inexistiram, é impossível dizer que não existem tendências governantes que, observadas em uma fração considerável de tempo, possam se configurar como movimentações coletivas.

Uma delas, chamo de anti-cinema. Outra, refém não dos modos de uma sociedade corrompida justamente pela velocidade das coisas, mas da academia, tem sido observada por décadas. E finalmente, aquela na qual Robert Eggers se encaixa foi confrontada por comparação na segunda edição da Revista Outra Hora.

E ainda assim, talvez a grande carência, a falta de modulação, passe por cima de todas essas movimentações porque, ao mesmo tempo que afeta todas, é nutrida por todas. O que Mizoguchi faz no início de Senhorita Oyu é reconstruir toda a narrativa a partir de uma movimentação de câmera que resulta em um detalhe, um detalhe que remexe as águas de um filme que poderia ser outras tantas coisas, mas que deve se encontrar a partir do impacto de uma gota no oceano que termina por criar uma grande onda.

Como comenta Bruno Andrade (2018) é questão de um detalhe mais do que de um acento, de um acento mais do que de uma soma, de uma soma mais do que de uma construção.

O que ocorre, neste filme de Eggers e em tantos outros, é uma falta de desníveis, de ambivalências, de relevo visual, cênico e narrativo. É possível observar isso em filmes de diferentes gêneros, mas talvez o horror seja onde isso se torna mais observável. Por ser um gênero que se baseia no extraordinário (seja ele sobrenatural ou não), na mancha que distorce e corrompe a realidade, é no mínimo interessante que essa realidade se apresente de alguma forma antes de ser corrompida.

Comparemos então os inícios dos filmes de Murnau e Eggers (e aqui me permito pular Herzog).


CONHECENDO O CAMPO

O primeiro plano do filme de Murnau nos mostra uma torre, de onde o protagonista enxerga (por meio de dispositivos comuns que, no cinema, se tornam teóricos) as duas entidades a serem afetadas por Nosferatu, a criatura. Pelo espelho, Thomas vê a si mesmo. Pela janela, ele vê Ellen, sua noiva. Ao seu redor, e de modo incompreensível a ele, vemos a cidade que, por sua vez, também não compreenderá de onde saiu a praga que há de assolá-la no decorrer do filme. Thomas faz parte da cidade, mesmo que não a compreenda. A cidade é destruída por causa de Thomas, mesmo que não compreenda.

Observamos, aqui, o tom com que se inicia o filme de Murnau: Thomas é um rapaz alegre, sua esposa uma jovem com zelo pelos animais e as flores (em uma rima interessante com o tema necrófilo do vampirismo, Ellen rechaça a flor de Thomas pois ele teve de matar-la para lhe dar de presente), e a cidade que vemos se movimenta em seu incompreensível e confortável caos iluminado pela luz do sol.

Já com Eggers, o filme parte de um pesadelo que, diferentemente de Murnau, se joga (eu diria até que se oferece) ao expressionismo. Desde o primeiro momento, vemos que Ellen e Nosferatu estão interligados, e que o mundo que habitam é ermo, melancólico, mergulhado no escuro, como se o sol não fosse capaz de penetrar para salvá-lo da putrefação.

Contudo, Rohmer acaba suavizando sua proposta: no cinema  de  Murnau  –  em  oposição  à  maior  parte  dos  filmes  feitos  em estúdio, em condições similares e na mesma época –, o que conta não é “sua habilidade em dar a ilusão de pintura”, mas antes a de “conservar o poder de investigação bruto, fotográfico, da câmera para nos fazer entrar plenamente num universo essencialmente pictórico. Melhor ainda, ele nos revela que o universo, nosso mundo cotidiano, é pictórico em sua natureza profunda.
— CRISTIAN BORGES

Mais a frente, ambos os diretores filmam a natureza. Murnau, no entanto, em uma espécie de previsão rosselliniana, mostra também seus interesses etnográficos, que resultariam no último filme antes de sua morte, a docuficção Tabu (1931). Há um senso de pureza em suas imagens externas, em como a luz incide sobre tudo que a câmera mostra e como as sombras não são planejadas, mas um adorno da própria natureza, como na sequência de planos que mostram uma grande montanha e sua sombra no vale abaixo.

Já a montanha filmada por Eggers - um cineasta que em O Farol (2019) se colocou em busca da poesia - parece tirada de um documentário de última geração do National Geographic (e que infelizmente não encontrei para adicionar aqui). Não uma jornada ao desconhecido (ou, no caso do filme de Herzog, uma jornada fúnebre), mas um empecilho para se chegar ao que importa.

Se o filme de Murnau é sobre trazer para a luz o fenômeno, trazer para luz as trevas, o de Eggers já nasce corroído por elas e, por isso, seu movimento em direção às mesmas se torna irrisório. O que me lembra a pergunta de Jordan Peele (um diretor que apresentou, até aqui, alguma modulação em seus filmes) em Não, Não Olhe (2022): o que é o contrário de um milagre? Mas a adapto, substituindo milagre por fenômeno, pois o filme de Eggers mostra quase o inverso. Em um mundo tão escuro, Nosferatu se torna apenas mais uma criatura amaldiçoada que o habita.

"A fenomenologia é necessária justamente porque, de início e na maioria das vezes, os fenômenos não se dão. O conceito oposto de 'fenômeno' é o conceito de encobrimento" (Heidegger, 1927/1997, p. 66)

Partimos então desta ideia psicopatológica para confrontar o filme de Eggers, e como este encobre o fenômeno Nosferatu.


PERSONIFICAÇÃO ESVAZIADA

Parte de outra tendência comum aos autores de hoje, Eggers fez apenas quatro filmes desde o seu polêmico A Bruxa (2015), mas diria que à essa altura é possível dizer algumas coisas sobre seu cinema que não são necessariamente negativas. Embaixador do pós-horror, é inegável que Eggers tem um apreço pela cenografia, por como todos os elementos convergem para concretizar a sua visão. Talvez os melhores momentos do filme sejam quando emula, com a luz, os tons sépia das cópias de filmes antigos que, unidas ao 4:3, geram pequenas eulogias.

O que me faz pensar em Nosferatu como uma espécie de análogo a Mank (2020), de David Fincher, em como parece propor algo e ir contra esta proposição constantemente - no caso do filme de Fincher, alguns elementos que emulam um filme antigo, e outros que deixam claro que se trata de algo digital; já no caso de Eggers, uma variação não de estilo e sensibilidade, mas de floreios que contradizem a ideia governante. Pois em um filme onde não há mistério (o Nosferatu existe e quer foder), porque esconder a figura do vampiro? Em um filme onde Eggers se permite brincar com o jumpscare, porque a recusa de mostrar frontalmente o monstro? Porque insistir na sugestão de algo que já é sabido desde sua primeira cena?

De mesmo modo, nos interessa olhar não apenas para a caracterização, mas para a movimentação. Retornando às primeiras cenas, em Murnau o caminho entre os protagonistas é filmado a partir de cortes, ainda rudimentares, que analisam um contraplano conjunto e contínuo: dois indivíduos que protagonizam uma pequena história cujos efeitos irão desencadear em toda uma cidade. Em Eggers, a câmera segue Thomas de modo a perceber, mas de fato ignorar o que está ao seu redor. Uma imersão gamificada na figura do eu, do protagonista não como um representante de uma arte esquecida (para Murnau, a do romantismo), mas de um sobrevivente em um jogo pós-apocalíptico onde somos lembrados que há movimento alheio ao protagonista, mas que jamais podemos acessar de verdade.

E então a movimentação não apenas contraria, mas desmonta a proposta da ambientação. Em um filme tão “atmosférico”, o que são aqueles planos em gymbal, onde a câmera faz movimentos tão anti-humanos? O que são as transições espalhafatosas comuns para vídeos de Instagram? Para um homem que crê em suas imagens, Eggers parece respeitá-las menos conforme as inunda e as cerca de efeitos de videomaker (talvez o filme tomasse outra guinada se víssemos um pov de Nosferatu fazendo sexo com Ellen).

Sem evocar a língua que conversa com Mizoguchi (e que só se tornaria de fato evidente em Fausto e Aurora), Murnau é capaz de integrar os espaços micro com o espaço macro a partir da montagem. Eggers, com toda a tecnologia de 2024, reduz todo o espaço à experiência de um único homem que, no final do filme, nem parece importar tanto. Pois o filme que vemos é sobre este homem, sobre sua esposa, sobre Nosferatu, ou sobre todos os três (porque, com toda a certeza, não é sobre a cidade)?

O Thomas de Nicholas Hoult é quase devoto de personalidade, a Ellen de Lily-Rose Depp é monotônica em seu desespero, e nem mesmo a presença de Willem Dafoe dá ao filme qualquer sensação de pertencimento - seu papel inclusive me lembra justamente o de um NPC de algum videogame qualquer. Pior que isso, as conexões entre todos são, tal qual a narrativa, sufocadas pelo visual opressivo.


A CRIAÇÃO DE UM NOVO MITO

A rigor, se o Nosferatu de Murnau é uma criatura grotesca, e o de Herzog uma criatura miserável, o de Eggers parece se envergonhar de sua própria imagem.

Não ajuda a voz e a fala pausada de Bill Skarsgård, nem seu bigode de Robotnik, mas curiosamente tive uma sensação prazerosa de ver que o personagem de Murnau parece ter criado sua própria mitologia, mesmo que essa se aproxime tanto da necrofilia.

Cada vez mais distante do Drácula (ao menos para mim, nenhum dos três compartilha semelhanças com o vampiro de Bram Stoker para além do vampirismo), a figura de Nosferatu agora parece ter se enraizado no imaginário popular com filmes bem sucedidos que se espalham por mais de 100 anos. E talvez este seja o grande mérito deste filme de Eggers, ser uma cópia barata que possivelmente leve a outras (ou vocês não conseguem enxergar um novo filme intitulado: A Origem de Nosferatu?) e que, esperançosamente, faça uma ou outra alma curiosa se aventurar pelo desconhecido, eventualmente atravessando o mesmo portal que Thomas atravessa no filme de Murnau.

Uma viagem pelo negativo, pois o digital está tão obcecado por corromper o mundo, que há muito se esqueceu de filmá-lo.

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