Bem-Vindos ao Anti-Cinema

O objetivo das notas que se seguem é tentar definir uma certa tendência do cinema contemporâneo norte-americano - uma tendência conhecida como pseudo-realismo - e sugerir suas limitações.


Peço licença e começo este texto com uma reedição da introdução de Truffaut, na Cahiers du Cinéma no ano de 1954, sabendo de algumas coisas: não sou norte-americano, mas este texto é sobre o cinema dos Estados Unidos, menos mas ainda sobre sua política de exportação monopolista, um tanto mais sobre os meios que os levaram a chegar onde estão e principalmente sobre o que são estes filmes que irei abordar. Sei também que caberia um texto semelhante sobre o Cinema brasileiro contemporâneo, mas ainda careço de estudo e de algumas resoluções as quais meus colegas parcialmente respondem em suas respectivas contribuições para esta mesma revista.

Por fim, sabendo da impossibilidade de oferecer um recorte “universal”, este texto se propõe a analisar elementos específicos, que podem ser encontrados em filmes não citados, ou mesmo não vistos ainda por mim. Semelhante a um projeto de pesquisa, aqui tento provar uma certa tendência… e o quão danosa ela é.

Dois anos atrás, convenci minha namorada a assistir Tudo Em Todo Lugar ao Mesmo Tempo (2022), filme que viria a ganhar o Oscar (e podemos discutir seu mérito e seu encaixe com o que se tornou o prêmio) e se tornar o mais discutido de 2022 (e não acho que possamos discutir sua onipresença - o filme esteve, de fato, em todo lugar).

Um pouco cansado do dia, confesso que apaguei por uns cinco minutos logo antes de Ke Huy Quan começar a explicar para Michelle Yeoh a função do multiverso. Não lembro muito bem o que ocasionou a quebra no espaço-tempo, mas lembro bem do desenho da cena, algo que me marcou consideravelmente mais que a overdose de cores (e pedras com olhos e mãos de salsicha) que se seguiram a partir dali.


A ESTÉTICA TIKTOKIANA

Na crítica que escrevi, dias após a sessão, comentei como Tudo em Todo Lugar… poderia muito bem ser mais uma “morte do cinema” - me apropriando agora do termo melhor trabalhado por André Gaudreault e Philippe Marion em seu livro conjunto "O Fim do Cinema". O motivo: o filme atingiu “a maior das honrarias” do circuito mainstream ao adotar em sua totalidade a estética tik tok.

Algo que, no texto, resumo como uma subjugação da imagem do agora pela ansiedade da próxima, onde “planos não podem durar mais de cinco segundos, a câmera tem de mexer, os ângulos tem de mudar, uma nova referência tem de aparecer, ou os espectadores podem preferir folhar o instagram ao invés de assistir ao filme”. Em suma, um filme não sobre o que assistimos, mas sobre o que vamos assistir logo em seguida.

E embora isso ainda me pareça verdade, não necessariamente um filme precisa ser “tiktokiano” para ser anti-cinema - outros diretores ao longo dos anos experimentaram com ideias visuais que, na prática, podem se assemelhar a essa sobreposição alucinante de planos. Do cinema de ação (John Woo, Tsui Hark), a filmes-ensaios (Vertov, Godard), as animações (ambos os Aranhaverso são alguns dos melhores blockbusters norte-americanos do século), muitos gêneros e formatos parecem ter se desenvolvido em cima da própria teoria da montagem soviética. O funcionar, ou não, depende de como essa ideia é conduzida.


A LIMITAÇÃO DA FALTA DE LIMITES

Mas se poderíamos falar de anticinema falando apenas de montagem, a questão que escolho como a principal neste texto, e que me parece mais preocupante, é essa ansiedade que define o nosso tempo e o efeito que tem nas imagens. No momento que o plano do agora não mais importa, não é preciso gastar tempo o compondo. Aí, é onde acho que o Cinema começa a morrer.

Como tudo na vida, o Cinema é uma arte (e uma indústria) cíclica, que vê repetidas crises ao longo de sua história com a substituição de elementos próprios a suas respectivas épocas. Vejamos: na transição do mudo para o falado muitos diretores desprezaram o visual de seus filmes em prol do diálogo, passando a resolver suas cenas menos no mostrar e mais no dizer. Algo semelhante aconteceu quando a cor se tornou mais acessível: não era mais necessário uma composição tão minuciosa da cena, de iluminação, de blocking, quando tudo passava pelo esplendoroso filtro do technicolor. Mas, entre falhas e acertos, eventualmente a água encontra seu nível - ou, pelo menos até agora, sempre encontrou.

O problema é que, na atualidade das coisas, e no recorte de filmes aqui selecionados, essa nova invenção é tanto tecnológica (o digital, alterando a maneira como captamos o mundo) como social (as redes, alterando a maneira como experienciamos o mundo). A maleabilidade do digital e seu custo exponencialmente menor que o do filme me parecem ter provocado, em alguns dos cineastas aqui citados, uma preguiça conveniente: se uma imagem não ficou boa, não há necessidade de retornar ao estúdio para filmá-la, tendo que organizar, iluminar, orquestrar novamente a cena. Basta um filtro, uma correção de cor, um efeito visual.

Algo que se alastra também para a relação espaço-temporal. Se diretores passaram anos tentando decifrar a decupagem como um processo criador de signos, isso não mais importa quando o objetivo é bagunçar tudo, quando a falta de coerência diegética se torna uma “ideia”.

Recentemente, viralizou uma foto que mostra um ator de Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa (2021) frente a um fundo verde em uma cena que se passa em uma sala de faculdade. Afinal, para que passar o trabalho de ir até o local, preparar a cena, iluminar, pensar o espaço, quando basta colocar ator X na frente de uma tela verde. 

Sem Volta Para Casa, inclusive, é um filme chave para entender a pobreza do Cinema Mainstream Norte-Americano. Se vendendo em torno da ideia de ter os três intérpretes do Homem-Aranha juntos, o filme de Jon Watts não oferece um único enquadramento memorável do trio, e pela forma como entregam seus diálogos em planos isolados é bem provável que tenham gravado a maior parte de suas cenas em tempos diferentes. O que ocorre, por tanto, é o inverso do que definia Éric Rohmer como o "espaço virtual do filme": embora seja possível conectar pessoas em lugares diferentes por meio da montagem, ao tratar com descaso essa costura dos planos o que se tem é um filme opaco, que se vende por gimmicks e nunca se resolve como Cinema.

Alie isso a conceitos popularizados por canais de YouTube - que tendem a dividir o Cinema em partes para seguir as categorias do Oscar -, e fazer Cinema se torna uma atividade de tutorial, um legítimo videomaking. É mais sobre a trucagem que sobre a imagem. Sobre como conceber um filme para que ele se pareça com o que se acha que as audiências querem assistir. Sobre como não importa se os elementos em cena estão mal organizados, iluminados, orquestrados - se esses forem de interesse, o filme se torna de interesse.

Configurando, então, dois níveis de simplificação - ou, para ser mais direto, subjugação da linguagem cinematográfica. Filmes que, ao tentarem falar uma nova língua (nesse caso, a língua do tiktok), passam por cima (e não subvertem) de convenções da linguagem.

Logo, menos tempo é gasto decupando, desenhando as cenas, pensando como os elementos se modulam para dar vida ao filme. Basta ilustrar as palavras com uma série infindável de estímulos, filmes que nascem com a ansiedade do público em mente, e não que tentam assimilá-la como um tema.


CINEMARKETING

Em suas muitas crises, o Cinema Norte-Americano viu estúdios julgarem saber o que o público quer, fazendo o possível para tornar a arte em produto.

Com o alto custo do filme, e o medo da influência dos estúdios, diretores como John Ford passaram a resolver tudo em poucos planos, a ter a cena em mente antes de filmá-la. Tanto minimalistas (como Ford) como detalhistas (como Hitchcock) desenvolveram seus próprios processos, seus próprios meios de desenvolver arte em uma indústria que visa sempre o lucro. Mas em um 2023 onde o filme mais popular é o de uma boneca, acho que podemos dizer que nunca chegamos tão perto da aniquilação da sensibilidade artística.

Defendido por espectadores progressistas (ou que se julgam progressistas) por ser um filme auto-consciente de sua natureza, Barbie (2023) é outro grande exemplo de anti-cinema.

Acho curioso, inclusive, que a parcela mais rasa da "crítica" cinematográfica, geralmente apaixonada por roteiros, não tenha enxergado o simples: o roteiro de Barbie é inexistente. O que o filme tem é uma série de pequenos sketches, não muito diferentes de reels que você vai deslizando com o dedo. A parte no mundo da Barbie já é ridícula, mas quando chega no mundo humano e entramos no escritório da Mattel, considero impossível um brasileiro não associar a encenação e o texto a um segmento da Turma do Didi ou da Escolinha do Professor Raimundo. Poucas vezes tive tanto a sensação de assistir a um filme que foi escrito em um brainstorm da firma ("e se agora eles fizerem isso?") como esse manifesto feminista de Greta Gerwig, uma cineasta fabricada para ser grande mas que é tão progressista como as políticas de Joe Biden.

E chega a ser triste que Gerwig tenha reconhecido Jacques Tati e Demy como influências, dois diretores que atingiram maestria em como lidam com o espaço e seus acontecimentos visíveis e virtuais. A impressão, ao assistir Barbie, é que cada cena foi gravada em blocos totalmente distintos: agora o ator A fala isso, ação-corta; agora o ator B fala isso, ação-corta. A caracterização pode até ser impressionante, mas se torna inútil perante a inabilidade de converter aquele mundo de plástico em um mundo filmado. Gerwig não faz Cinema em Barbie, ela aponta uma câmera e risca caixinhas, como uma ação de marketing que tem de ser executada em sua totalidade (inclusive, nesse ponto, o filme merece um texto elogioso pelo sucesso absoluto como propaganda).

Se fosse definir o anti-cinema em uma frase, seria uma frase longa, mas que seria mais ou menos assim: se as vanguardas nos apresentaram os primeiros diretores cinéfilos, que queriam homenagear seus filmes e diretores favoritos ao passo que giravam a roda do Cinema apesar da indústria, o atual momento do Cinema norte-americano nos apresenta diretores que, de um modo ou de outro, se aliam a tudo que ela representa: seguir as tecnologias, seguir os meios de produção, seguir os objetivos finais, seguir as campanhas de marketing enquanto, no meio do caminho, se deixa de fazer Cinema.

Aí, colocamos tudo que a Marvel fez, boa parte das adaptações de materiais existentes, Barbie e seus inevitáveis filhos, mais de 80% de todos os indicados a "Melhor Filme" no Oscar. Daí, quando daqui a alguns anos se perguntarem como Shyamalan, Fincher, Linklater e outros diretores não têm a estatueta dourada, a resposta será simples: eles fizeram cinema.

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Entrevista | Christian Petzold (Rogerebert.com)

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