Crítica | Destacamento Blood (Netflix)
Os filmes de Spike Lee tem a qualidade única de sempre serem atuais.
Do primeiro “Faça A Coisa Certa” até o último “Infiltrado na Klan”, seu cinema é constantemente moldado sobre as estruturas da sociedade norte-americana e sobre como esta vive consigo mesma. Algo que, infelizmente, mostra que se sua atemporalidade existe, é porque as mudanças pela qual luta a tanto tempo demoram muito para mudar.
Dirigido por Lee e re-escrito por ele e Kevin Willmott a partir de um roteiro de Paul De Meo e Danny Bilson, “Destacamento Blood” conta a história fictícia de quatro veteranos da guerra do Vietnã que decidem voltar ao país após anos para resgatar os restos mortais de seu ex-companheiro de guerra, e também um tesouro que pode deixá-los milionários.
Logo de cara o cineasta já utiliza as diferentes linhas temporais para brincar com o visual do filme: as cenas que se passam no presente são filmadas em razão de aspecto 16:9 enquanto os flashbacks na antiga 4:3. O efeito jamais soa presunçoso e ainda conta com algumas elegantes transições, realizadas por efeitos visuais, que esticam ou encurtam a tela (e que deveriam ter sido utilizadas até o fim do longa, sua inconstância me incomodou). Além disso, a própria resolução difere, com as imagens do presente consideravelmente mais rebuscadas, ao passo que as cenas durante a guerra tem uma pegada quase documental. Adicionando ainda cenas reais do confronto em solo vietnamita, Lee constrói um filme rico em sua linguagem, que honra o cinema em diversos momentos - com alusões claras ao próprio trabalho sem soar pedante -, e que alterna perfeitamente a barreira entre o real e o fantasioso.
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Afinal, a própria premissa do longa renderia um belo filme de aventura: quatro amigos vão em busca de um tesouro perdido em meio a selvas, rios e desfiladeiros, com direito a uma trilha sonora grandiosa e algumas tomadas deslumbrantes, como esta abaixo onde a imensidão da paisagem parece se agigantar a volta dos personagens e de suas descobertas.
Porém, há um componente na natureza daqueles personagens que não permite que este filme, acima, exista. Inicialmente descritos como um grupo comum (branco, nas mãos de Hollywood), os tais cinco bloods (como se chamam) são homens negros que, como o filme pontua, tiveram papel crucial na guerra do Vietnã e jamais receberam o devido reconhecimento. Como sempre digo, no caso de histórias calcadas no mundo real, se um personagem deixa de ser branco para se tornar negro inevitavelmente sua história tem de mudar, pois caso não fique claro olhando os noticiários que sua experiência neste mundo difere de acordo com a cor da sua pele, você precisa rever seus conceitos.
Em cima disso, Lee faz o que faz de melhor, criando uma narrativa que, apesar de imparcial, sempre oferece todos os lados da mesma discussão: os bloods se sentem, justamente, injustiçados pelos conterrâneos brancos, mas não percebem o estrago que fizeram em um país que nada tinha a ver com isso. Em diversos momentos, cidadãos locais os olham com ódio e dor, mas jamais advinda da cor de sua pele, os enxergando apenas como os homens que mataram seus pais e mães. E o roteiro vai além, fazendo com que o grupo confronte alguns destes homens, mas raramente reavalie as próprias ações. Em uma cena chave, o Eddie de Norm Lewis - o personagem mais mal desenvolvido do quarteto, diga-se - discursa sobre como deveriam utilizar o dinheiro para devolver para sua comunidade, assim como Stormin Norman (Chadwick Boseman, aka Pantera Negra, soberbo) queria.
A maneira como esta termina, inclusive, é o ponto de ebulição do longa, que já havia construído um clima de tensão entre o grupo e apreensão por conta dos arredores, algo que a câmera subjetiva, escondida na mata, sugere sorrateiramente. Mudança esta de tom que vem no momento certo, sendo que a primeira hora se arrasta uns bons 15 minutos a mais do que o necessário, se preocupando demais em criar subtramas que nem sempre adicionam ao arco central de seus personagens - uma, envolvendo a filha de um dos membros, é tratada de forma quase leviana e parece estar no filme apenas para gerar apelo dramático.
Mas mesmo criando personagens demais, o roteiro consegue amarrar seus destinos de maneira apropriada e justificada, com resoluções que servem não apenas para eles como indivíduos, mas para as ideologias que representam. Pois se Eddie já havia atingido esta resolução, Otis e Melvin têm destinos que conversam diretamente com sua evolução como seres humanos, o último tendo um ato final heróico, admirável e comovente ao passo de que o primeiro serve como a bússola moral do grupo. Chegamos a nos importar até mesmo com o trio anti-bombas que os Bloods encontram pelo caminho, ou com o guia que se viu dentro de uma situação que jamais deveria estar, e por mais unilateral que o vilão principal seja - e óbvio, oferencendo o único twist previsível -, entendemos o motivo do ódio de seus comparsas. E percebam que a nota com que Lee termina o longa, por mais que consideravelmente mais positiva do que o incômodo “Infiltrado na Klan”, não soa com um final feliz, mas como um ponto de ignição para as mudanças que seus personagens experienciam.
Ainda sobre seu último trabalho, aqui ele utiliza um mesmo recurso: sempre que membros dos Bloods se abraçam vemos o mesmo movimento por outro ângulo, algo que ressalta seu companheirismo e que retorna apenas ao final da projeção, reforçando que apesar de a jornada ser difícil, no final conseguem resgatar o sentimento que tinham um pelo outro, simbolizando que o que mais se precisa em momentos como esse é a união. Esta, que Lee faz questão de frisar: tem de ser entre todos.
Contudo o núcleo de maior destaque só poderia ser aquele protagonizado por Paul e seu filho David. Estranhados durante a vida por conta de circunstâncias injustas para ambos os lados, a relação dos dois personagens é repleta de dor e angústia, que parecem não se apagar nem com a intenção mútua de se re-aproximarem. Pois se David se une a missão por causa do dinheiro, a preocupação que demonstra com o pai - e o desinteresse em ganhar mais do que o necessário durante a expedição -, prova a índole de um homem que tomou para si a responsabilidade de educar crianças com algo que não teve na infância. Mas apesar de Jonathan Majors se consolidar como uma revelação - protagonizando uma das cenas mais tensas e desesperadoras que já assisti em um filme de guerra - é Delroy Lindo quem rouba o filme com uma performance caótica e auto-destrutiva. Retratando, por sua vez, um dos melhores traumas pós guerra que já vi no gênero, Lindo professa um monólogo destinado a imortalidade na filmografia do diretor - e quem sabe além - e caso o ator não ganhe uma enxurrada de prêmios por este papel será um absurdo inconcebível.
E a própria trajetória não só dele, mas do grupo em si, pode ser exemplificada na música de Marvin Gaye, cantor negro norte-americano assassinado pelo próprio pai anos atrás. Na primeira vez que uma composição sua surge - chamada por uma locutora de rádio -, todos os quatro cantam criando um coro emocionante e simbólico.