Crítica | Infiltrado na Klan

4684419.jpg-r_1920_1080-f_jpg-q_x-xxyxx.jpg

É revoltante que cenas desse filme sejam tão facilmente identificáveis. É fascinante que essa história seja real. E é triste que “BlacKkKlansman”, trazendo uma história real de 1978, ainda seja tão atual.

Aqui não vemos o bom e o mau se mesclando em camadas cinzentas. O discurso é claro: a Ku Klux Klan é a vilã. O policial negro é o herói. Não há discussão. E essa clareza no discurso cinematográfico, infelizmente, se torna necessária hoje para que não haja espaço para passadores de pano profissionais relativizarem o racismo e a violência policial como fizeram outros certos filmes (*tosse* “Three Billboards…” *tosse*), ou para que obras que abordam esses temas sejam mal interpretadas por um público com uma capacidade de interpretação rasa, que dá, por exemplo, o título de mocinho aos personagens errados (*tosse* “Tropa de Elite” *tosse*).

Aqui, Spike Lee está em casa. As marcas registradas do diretor estão todas presentes: o Dolly Shot duplo em momentos emblemáticos, a falta de pudor para tratar de temas sociais e políticos e a mensagem - ou aviso - que ele constantemente tenta nos passar: “WAKE UP!”

Nessa cena o protagonista foge da casa que é um dos pontos-de-encontro dos membros da Ku Klux Klan. Ao fundo, vemos a placa: America, Love it or leave it! Lembra algo, não?


Nessa cena o protagonista foge da casa que é um dos pontos-de-encontro dos membros da Ku Klux Klan. Ao fundo, vemos a placa: America, Love it or leave it! Lembra algo, não?

O diretor é conhecido por inserir em seus filmes uma alta carga de estilo visual e aqui não é diferente. Desde o figurino icônico do protagonista até a escolha de planos mais inventivos e “tortos” e uma montagem (amém Barry Alexander Brown) que permite a adição de mais do que apenas as cenas da história em sequência - até pôsteres de filmes Blaxploitation surgem sobre a tela em uma conversa entre dois personagens. Mas esses recursos imagéticos não são levados ao exagero. Spike Lee quer sua atenção. Novamente: WAKE UP!

A história surpreende muito por ser real. E assusta por fazer um paralelo tão próximo com a atualidade. Fiquei pensando, durante o filme, em como escreveria a relação da narrativa com a realidade, ou seja, em como exatamente traçaria esse paralelo. Ao rolar dos créditos, dei de ombros. Tudo aquilo que poderia falar sobre o racismo contemporâneo, neonazis, Trump e Bolsonaro já estava ali, assinalado e escancarado, nesse filme que não só se compara a fatos históricos, mas os representa.

Logo no começo do filme, por exemplo, somos apresentados a um grande expoente do movimento negro: Kwame Ture, ativista e figura fundamental no movimento dos Panteras Negras. Movimento este, cuja organização e disciplina colocava medo até mesmo na polícia americana. Kwame Ture aparece quando o nosso protagonista, Ron Stallworth (John David Washington), se infiltra em um de seus comícios para levar informações de volta à polícia. É lá também que se inicia a relação entre ele e Patrice Dumas (Laura Harrier), personagem criada para a história que se inspira fortemente em Angela Davis.

3997065.jpg-r_1920_1080-f_jpg-q_x-xxyxx.jpg

A cena do discurso é muito marcante. As palavras do ativista são intercaladas com planos insólitos mostrando o rosto do público negro, que assiste com atenção. Ron, que estava ali a trabalho, não se contém. Sua expressão escancara a vontade que é criada neste novato da força policial: a vontade de agir. Esse é um dos momentos altos do filme, que possui diversos deles.

Spike Lee é perito na técnica de construir picos climáticos.

A narrativa se encaminha a um momento de tensão, depois desafoga e assim segue repetindo essa montanha-russa. É uma ótima estratégia para que vários momentos incríveis (a cena do detector de mentiras, as reuniões paralelas dos grupos, o embate final) sejam todos valorizados e o filme não siga numa constante, que poderia cansar.

blackkklansman.jpeg

Quando Ron decide ligar para um anúncio do jornal e entrar em contato com membro da KKK, a história da investigação começa a se desenrolar de fato. Ele e seu parceiro branco Flip (Adam Driver) criam um personagem racista, com o nome de Ron, para conseguirem se infiltrar no movimento do Klan. O falso Ron é tão verossímil que consegue conversar e se tornar “amigo” de David Duke, líder da organização.

A investigação vai ensinando a dupla sobre as operações da Klan, revelando a mentalidade frouxa e nauseante de seus membros e até desvendando um pouco sobre os limites pessoais dos investigadores. Flip revela, por exemplo, que só começou a prestar atenção em sua descendência e em seu lugar no mundo como judeu quando passou a frequentar as reuniões da KKK, infiltrado como um falso Ron. E Ron, o verdadeiro, lida com as controvérsias de ser, concomitantemente, negro e policial.

Se você não for um racista de carteirinha como D.W. Griffith, tratar o tema da Ku Klux Klan em um filme é complicado. “Mudbound”, do ano passado, focou na estratégia de choque e medo para apresentar esse terrível cenário. “The Birth of a Nation”, aquele de 2016, optou pelo caminho da raiva e da revolta. “BlacKkKlansman”, que difere dos outros por ter elementos mais cômicos, opta por um terceiro caminho - que não é melhor nem pior, apenas diferente - o da verdade absurda. Spike Lee sequestra nossos olhos e grita: “Olhe para isso! Veja como é ridículo! Veja como é inconcebível! Olhe para isso, porque isso aconteceu. E ainda acontece.”

304451_1530616429.5583.jpg

Não revelarei o final, porque o impacto será muito maior quando recebido de forma crua, mas já adianto: vai deixar a sala de cinema em um silêncio mortal. É uma conclusão irreverente e corajosa, que faz jus a todo o filme. De arrepiar.

Spike Lee já comentou, em entrevistas, sobre como o avanço do ódio não é uma ameaça restrita aos Estados Unidos. “É um problema global.” E para quem presta atenção ao seu redor, é fácil perceber que o Brasil também se inclui nessa jogada. Se todos os trágicos acontecimentos recentes causados pelo avanço da extrema-direita, pela normalização do preconceito e pela glorificação da violência já não são suficientes, que “BlacKkKlansman” sirva como mais um poderoso alerta. WAKE UP!

8,8

Anterior
Anterior

Apostas para o Grammy 2019

Próximo
Próximo

Crítica | Millenium: A Garota Na Teia de Aranha