Crítica | Os Fabelmans

Charmoso e divertido, “Os Fabelmans” mostra o lado mais pessoal que já vimos de spielberg.

Com toda elegância característica do diretor, ele faz uma declaração de amor para uma indústria que ama ele há quase 50 anos.


Quando Sammy Fabelman, 7 anos, vai ao cinema assistir “O Maior Espetáculo da Terra” (1952, dir: Cecil B. DeMille), seus pais não podem imaginar que estariam acendendo uma faísca que jamais se apagaria na cabeça de um menino, no hanukkah ele pede um trem de brinquedo de presente e então passa a tentar reproduzir o acidente filmado por DeMille dentro de sua casa, para estranhamento do seu pai (Paul Dano), já sua mãe (Michelle Williams) entende que essa é a maneira do protagonista compreender o caos. “Os Fabelmans”, tratado como semi-autobiografia, é uma maneira de Spielberg compreender o caos da sua família durante sua infância e adolescência, o diretor utiliza suas ferramentas de costume para isso (trilha de John Williams, edição de Michael Kahn, fotografia de Janusz Kaminski, roteiro em parceria com Tony Kushner e etc) e o resultado é um filme que captura sim o ambiente familiar dos Fabelmans mas também nos dá a perspectiva de um famoso cineasta se apaixonando pelo cinema. Do mesmo lugar que o roteiro tira suas forças, surgem alguns problemas, por vezes a homenagem à sua família soa mais como uma homenagem à si mesmo navegando no meio de pessoas problemáticas e o diretor toma tempo demais nos mostrando o quão brilhante ele é.

Depois de ver brevemente o menino judeu que tem seu primeiro contato com o cinema em Nova Jerséi, passamos a maior parte do longa assistindo ao adolescente Sam Fabelman (Gabriele LaBelle), que gosta de fazer filmes com seus amigos escoteiros no Arizona. As pessoas que habitam sua casa são seu pai, um engenheiro genial que valoriza os conhecimentos mecânicos e científicos e sua mãe, uma exímia pianista com gosto para arte e imaginação, as diferenças entre eles começam a ficar mais evidentes para o protagonista conforme ele envelhece, apesar de o público poder observá-las desde o primeiro diálogo entre os dois na frente do cinema. Além do casal levemente disfuncional, um colega e melhor amigo do seu pai, chamado de Tio Bennie (Seth Rogen) é presença constante no núcleo familiar de Sam, que ainda conta com as três irmâs menores que fazem às vezes de atrizes nos seus filmes. Em um diálogo no segundo ato, o pai do personagem o fala sobre como sempre se interessou por ciência para saber “como as coisas no mundo são feitas”, essa frase reflete justamente a maneira como Sam (e Spielberg) interagem com a arte e o fazer cinematográfico, a final de contas suas técnicas para criar efeitos visuais “Tubarão” (1975) e “Contatos Imediatos de Terceiro Grau” (1977) são até hoje muito discutidas, essa capacidade do diretor aparece quando o jovem personagem usa alfinetes para furar filmes em 8mm fazendo parecer que tiros estão sendo disparados no seu western.

Não é só o roteiro que nos conta como Sam Fabelman é criativo e técnico atrás de uma câmera, Spielberg faz questão de mostrar seu talento com planos equilibrados e elegantes, como o que sua família senta em um quarto de hospital com Paul Dano em um canto de frente para um monitor de batimentos cardiácos e LaBelle no canto oposto da sala que olha para sua mãe chorando em cima da cama abraçada na vó do protagonista prestes a morrer. A escolha de uma das mais discretas e minimalistas trilhas que Williams já compôs ressalta o talento do compositor com pianos intimistas, na maior parte das vezes diegéticos e que quase não se nota enquanto tocam mas deixam um vazio nos ouvidos ao pararem. Sem dúvidas Spielberg é o maior diretor hollywoodiano dos últimos 50 anos (não o melhor, não o meu favorito), um dos principais motivos para isso é sua capacidade extraordinária de compreender o limite entre seu talento compondo quadros e as vontades do público dos Estados Unidos, enquanto diretores muito mais talentosos se afastam do espectador médio com técnicas mais apuradas, Spielberg cria momentos lindos como Sam filmando um travelling no set do filme de segunda guerra que faz com seus amigos em cima de um carrinho, quando leva o menino que faz o personagem principal a se emocionar com suas direções.

Mas, “Os Fabelmans” não começa com uma família na fila do cinema, antes do primeiro plano-sequência o público vê uma mensagem do próprio Spielberg, em um cenário quente, olhando para câmera e agradecendo a presença de quem foi ao cinema assistir seu novo trabalho. Esse é o filme mais pessoal que o diretor já fez, apesar de dramas familiares terem sido um tema que permearam obras importantes deles, essa é uma obra autobiográfica, que coloca as pessoas na sua volta como caóticas e problemáticas e ele como o gênio capaz de realizar tudo que imagina. Apesar de ser um bom personagem, é ruim pensando em roteiro o quão limpo é o protagonista, ele não erra, e suas escolhas mais complexas são justificadas em excesso, quando descobre a natureza da relação entre sua mãe e tio ao editar filmes caseiros e opta por não contar para seu pai, o roteiro ajuda a gente a entender sua escolha. Essa generosidade não se aplica a nenhum dos outros personagens, que nos conflitos com o protagonista soam como vilões. Há um excesso de cenas mostrando suas virtudes como diretor, sua genialidade, sua inventividade, seu amor pela arte, fica nítido que 150 minutos é tempo demais para “Os Fabelmans” e, ironicamente, com menos enfeites narrativos e visuais, Spielberg teria demonstrado ainda mais seu talento. Ao final do filme, a homenagem para a família soa mais como uma exaltação ao gênio que floresceu em meio ao caos.

É pelo menos o terceiro filme no último ano há mostrar crianças que se apaixonam por cinema em um ambiente caótico ou violento, os outros dois foram o horrível “Belfast” e “Armageddon Time”. O segundo é bem útil a troco de comparação, James Gray tentou ser mais honesto que Spielberg contando uma história bem semelhante, seu filme tem mais nuances e as temáticas são parecidas (o lado artístico do seu protagonista são menos importantes), mas “Os Fabelmans” se destaca consideravelmente nessa comparação. Spielberg pode sim ter exagerado construindo um mito ainda maior em torno de si mesmo, na sua versão adolescente, mas fez isso como só ele mesmo seria capaz. Sua câmera e a câmera de Sam encantam o espectador, enquanto trazem momentos magníficos para assistirmos, os trechos em 8mm filmados pelo protagonista ocupam a tela e assistimos a filmes amadores ou caseiros feitas de maneira impressionante. O diretor comprova tudo que pensa de si mesmo, ele é sim capaz de fazer ideias incríveis virarem grandes produções de Hollywood com delicadeza, a cena em que Michelle Williams dança atrás de uma fogueira é a prova disso. Seus defeitos são tão hollywoodianos quanto suas qualidades e dentro dessa indústria, Spielberg é rei.

7

Anterior
Anterior

Crítica | X: A Marca da Morte

Próximo
Próximo

Crítica | Os Donos da Noite