Crítica | Os Donos da Noite
a tragédia americana
Em seu melhor filme, James Gray filma a desilusão do sonho americano
Muitos diretores passam suas carreiras e vidas em busca da verdadeira natureza do Cinema, geralmente refazendo o mesmo filme de novo e de novo até encontrarem o que parece ser sua contribuição máxima para a sétima arte.
A maioria falha, alguns poucos conseguem, e aqueles que até mesmo se repetem nesse nível mais alto podem ser contados nos dedos. Como a arte mais complexa dentre as outras seis tradicionais, o Cinema se desafia e se reconstrói constantemente dentro de seus próprios limites, sempre encontrando novas vertentes de pensamento e execução que nos afastam ainda mais do representante ideal. O qual (ou quais), ao meu ver, quatro diretores chegaram absurdamente perto.
E o que Dreyer, Hitchcock, Kubrick e Mizoguchi têm em comum, se não a encenação. Atores que, sob a superfície da imagem, se tornam criaturas em uma realidade alternativa que existe apenas por algumas horas, assumindo um caráter diferente a cada nova repetição, por cada novo espectador. Não é por acaso que muitos dos melhores filmes da história envolvem comentários diretos sobre o ato de encenar, seja ele uma completa farsa, ou apenas uma forma de adaptação por motivo de sobrevivência.
ESTRANHOS EM UM NINHO
Quando Joaquin Phoenix recebe sua primeira missão oficial como membro da polícia, antes mesmo de ser membro oficial desta, lhe entregam um isqueiro. Um isqueiro simples, mas que denota em sua simplicidade de objeto comum um dos motes mais conhecidos do Cinema: um MacGuffin, que remete diretamente ao mesmo objeto que vemos em Pacto Sinistro (1951).
Ali, já era possível antecipar que o pior aconteceria, e o culpado seria aquele pequeno pedaço de metal que carrega consigo um legado que vai além, obviamente, de seu clone no filme de Hitchcock. Ou não, pois o que entrega o personagem de Phoenix, infiltrado em uma operação de tráfico de drogas com uma escuta em um objeto pouco suspeito (de verdade), é justamente a encenação.
O batimento acelerado, a cabeça baixa, os olhares que procuram não fazer contato, como se com medo de que revelassem apenas o suficiente. Phoenix, um dos grandes atores de sua geração, consegue atuar em camadas como poucos. A cena, curta e com uma câmera na mão que mexe apenas o suficiente para mostrar a incerteza da situação com um ruído calculado na imagem, é um daqueles momentos onde o ator incorpora todo o idealismo do diretor e praticamente resume tudo que o filme tenta fazer: vemos Phoenix interpretando um Bobby determinado em proteger o irmão e o pai e que, para isso, precisa fingir mais uma vez ser o Bobby, rebelde filho de policial auto-denominado playboy, que deslizava pela boate como uma serpente na selva. A encenação da encenação, um menino que nunca quis virar homem, tendo de fazer isso sob pressão, enquanto tenta a todo o custo interpretar a si mesmo.
A encenação farsante, um jogo de papéis, uma disputa hierárquica, os ritos de passagem dentro de instituições que levam suas tradições a sério demais.
JOGOS DE PODER
“Nós controlamos a noite” era o slogan da polícia Nova Iorquina nos anos 80, uma mensagem infantil e que escancarava a frágil masculinidade por trás da guerra travada contra o crime.
Não é a toa que Robert Duvall esteja no filme, ou que Phoenix dê os ares de Ray Liotta, pois o que James Gray faz em Os Donos da Noite é uma referência direta aos Gângsters de Coppola e Scorsese. A própria premissa é semelhante a de Os Infiltrados (2006) (que por sua vez é um remake de Conflitos Internos (2002)) e certamente todo esse jogo de dualidades e tradições remete aos Faroestes de Ford, com personagens e bússolas morais que perambulavam entre cowboys e nativos.
Ambientes onde os homens fazem acontecer enquanto as mulheres apenas olham, isoladas. Um Cinema de comunicados, chamados e ligações, de mensagens importantes ditas apenas para aqueles que decidem entrar no jogo de poder - ou que não conseguem escapar. Gray filma essas sequências de maneira burocrática, sem a energia da boate, tirando a vibratilidade das cores e isolando protagonistas de seus arredores. Vemos os oficiais conversando de longe, e apenas seus olhares de reprovação para Bobby, que vemos de perto. Na boate, a mesma lógica se repete: escondidos em uma posição aparentemente segura, vemos as ações e gestos dos traficantes, e logo somos transportados para o rosto pensativo de Bobby.
Ele é a ruptura, o ponto de ligação entre os dois mundos, sem jamais se conectar de verdade a nenhum deles. Seu lugar é na boate, onde desfila, conversa com alguém aqui, encosta em alguém ali. Assim, Phoenix parece literalmente um recurso visual de Gray, uma subversão e ruptura nessa estética setentista, quase um personagem de Abel Ferrara em um filme da Nova Hollywood.
O que torna o filme de Gray algo que, apesar de assimilar todos esses elementos de Cinemas passados, uma prova do fim de seus respectivos auges. Os Donos da Noite, com seu título que praticamente caçoa do slogan que um dia foi símbolo, é um comentário sobre a fragilidade dessas instituições masculinas, sobre a decadência dos pilares que, em tese, deveriam formar a base para o sonho e a sociedade americana. Um olhar sensível, de alguém que viu de fora, de um lugar supostamente seguro, esse embate.
E a segurança acaba sendo justamente a dialética da encenação. Enquanto seguros, os personagens podem ser “eles mesmos”, desde que joguem o jogo conforme forem mandados. Mas Gray consegue não apenas criar tensão com as luzes de um carro que vem atrás, e sim com todo o isolamento que se cria em volta do casal. Afinal, com Bobby, nossos olhos, confinado e sem contato com o outro lado, não fazemos ideia de onde este se encontra - e, portanto, parece estar sempre a espreita.
O que torna o filme uma experiência continua de tensão e antecipação, mas também em uma sequência trágica e inevitável em torno de seu conceito de encenação, com cada pequeno erro criando acontecimentos que nunca param, mesmo quando não os vemos. Uma falsa sensação de segurança, provada pela ausência do olhar controlador. Enquanto na boate, de olho em tudo, Bobby estava “bem”.
UM CORPO QUE SOME
Na primeira cena, vemos Phoenix e Eva Mendes em um dos poucos momentos de sinceridade real do filme. Um beijo apaixonado, uma fotografia quente, um ângulo agudo e ousado. A única verdade concreta que Bobby possui, é seu amor por Amada (o nome).
De certa forma, o filme de Gray é inteiro sobre ela.
Li em várias críticas como, ao ter de fazer uma escolha por um dos lados, Bobby perde a única coisa que tinha. E Gray poderia continuar por mais uma exaustiva hora onde o personagem completa sua jornada épica buscando por ela, com o sucesso da busca sendo quase irrelevante para a certeza de que essa hora extra deixaria todos acabados. Mas ele escolhe se aproximar das idealizações Hitchcockeanas, simbolizadas principalmente por Vertigo (1958), ao filmar a ausência. Um telefonema recusado, um olhar que procura na plateia mas encontra apenas alguém parecido. Uma sensação de Rebecca (1940), de algo que ficou para trás, e deixou apenas solidão.
Mas Gray vai além: ao confessarem o amor um pelo outro em meio à um ritual arcaico de uma instituição patriarcal, os irmãos verbalizam em forma de um sussurro quase envergonhado a vitória dessa rede que não premia aqueles que tentam escapar. O oposto do sonho americano. Um sucesso infeliz. A porta que se fecha e isola Michael Corleone de sua esposa.