Crítica | Whitney Houston: I Wanna Dance with Somebody

Mais uma cinebiografia que serve para desrespeitar uma amada artista.

Escrever sobre cinema, e sobre arte, reserva todo tipo de desafio e “I Wanna Dance with Somebody” é a pior experiência que já vivi em uma sala de cinema.


Syd Field, o maior professor de roteiro dos Estados Unidos, escreveu uma vez sobre como odiou “Chinatown” na primeira vez que assistiu o filme, ele conta que cansado depois de um almoço que bebeu um cálice a mais de vinho do que deveria, foi assistir uma sessão especial no estúdio que trabalhava e achou o famoso mistério cansativo. Ao longo de sua carreira como escritor e professor Field utilizou muitas vezes o roteiro de Robert Towne para ensinar como escrever a história perfeita. Trago isso porque quando a gente vê um filme com a necessidade de criticar ou avaliar ele depois, muitos fatores externos acabam influenciando nossa análise, às vezes a gente só sai da cama com o pé errado. Eu não podia esperar quando acordei hoje e fui para a sessão da cinebiografia da Whitney Houston eu veria o pior filme de toda minha vida.
Claro que a frase no pôster “do mesmo roteirista de ‘Bohemian Rhapsody” e o fato de ser mais uma cinebiografia musical, o gênero que mais tem resultado em tragédias na telona, não animavam, mas os intermináveis 145 minutos de duração foram chocantes. Acho importante fazer algumas convenções aqui, se nesse texto eu usar a palavra “história” eu estou me referindo ao conjunto de cenas de “I Wanna Dance with Somebody”, porque o longa não tem nada que lembre uma história, o mesmo serve para o termo “personagem”, quando aparecer aqui saibam que significa apenas um ser humano que esteve em cena e teve falas, porque não há nenhum personagem também na produção também. Há dois meses eu assisti a outra cinebiografia musical, “Weird: a história de Al Yankovic” minha opinião sobre esse filme foi (e ainda é) a seguinte: os filmes desse gênero em holywood hoje são tão ruins, que apesar de tentar, ele não se qualifica como uma paródia. Hoje eu tive certeza disso.

O primeiro momento que se destaca em “Whitney Houston” é logo nos primeiros 20 minutos, depois de uma sequência da protagonista cantando na igreja cheia, ela e sua mãe ensaiam sozinhas no mesmo lugar, enquanto Whitney Houston (Naomi Ackie) pratica sua música gospel as duas conversam sobre sua técnica em um momento, no outro a jovem cantora diz que vai desistir de cantar e sua mãe a proíbe e depois ela volta a praticar normalmente. Uma cena com belo potencial, mas é uma das poucas vezes que Cissy Houston (Tamara Tunie) tem algo relevante para fazer no longa, a relação entre as duas fica por conta desse momento inicial. Poucas cenas depois, Whitney já conhece, se apaixona e se muda com sua namorada e futura produtora Robyn Crawford (Nafessa Williams), quando isso acontece temos a impressão que irá acontecer algum tipo de conflito entre ela e sua família muito religiosa, mas nada acontece. Dois problemas bem graves ficam nítidos já no começo de “I Wanna Dance with Somebody” e duram até o final, há (como em “Bohemian Rhapsody”) uma tentativa de podar ao máximo a imagem de Houston, a ponto que a personagem dificilmente está em qualquer contradição, como se fosse um sacrilégio mostrar uma estrela que nem ela cometendo erros e como ela é o centro de todas cenas do longa, não há conflitos. Outro problema bem grave é que o tom das cenas muda rapidamente sem que nunca se estabeleça coesão subjetiva na história.

Seria impossível abordar todos problemas dessa produção, por isso escolhi três momentos separados para pontuar. O primeiro, no fim do primeiro ato, é quando Whitney assina seu primeiro contrato. Essa sequência se inicia com um plano-detalhe no cabo de um guarda-chuva sendo segurado por um personagem que não volta a aparecer, fora de foco no fundo da imagem chega um carro, o homem que segura o guarda-chuva abre a porta do veículo e fala o nome: Clive (Stanley Tucci). Logo depois, vemos os dois homens entrando na boate em que Cissy Houston vai cantar, com sua filha fazendo backing vocals, nos bastidores as duas brigam por nenhum motivo (o roteiro não é capaz de nomear um tópico na discussão), quando a mãe da protagonista vê os dois homens ela subitamente diz que está sem voz e pede para Whitney fazer o solo de abertura do show. Claro, a cantora levanta o público e rapidamente ela e sua família estão em uma sala sentados com Tucci assinando um contrato, essa é a primeira cena que o pai da protagonista John Houston (Clarke Peters) tem ação, quando faz uma pergunta que não tem nenhuma consequência no filme.

As duas cenas seguintes são Whitney e Clive conversando sobre as influências musicais da cantora, um diálogo muito cômico em que ela diz que gosta só de músicas boas e os dois rapidamente decidem que vão contratar compositores para escreverem suas músicas e a família Houston descendo de elevador depois das duas reuniões. Enquanto seus pais fazem planos para sua carreira, a câmera avança em tracking para um plano fechado na cara da protagonista. Quis descrever toda essa sequência para levantar alguns dos elementos mais confusos da trama, a começar pelas relações familiares, antes disso só havíamos visto os três no mesmo ambiente uma vez, quando o casal tem uma dicussão grave e Whitney os escuta chorando do segundo andar de sua casa, e isso representa a dificuldade do roteiro em trabalhar com interações humanas, em nenhum momento a protagonista tem interações reais com as pessoas na sua volta, não é que exista uma mudança na maneira como seus pais a tratam depois de sua fama, só não há nenhuma coerência, nenhum sentimento compreensível.

Destaquei também duas ações de câmera que chamam atenção, o plano-detalhe que abre a sequência além de visualmente feio, sem cor, também é inútil, pontua algo que não tem nenhuma importância e poucas vezes é usado novamente. O tracking utilizado como sempre para ressaltar o isolamento de um personagem se acentua quando seu pai a descreve como “a princesa da américa”, não há porém, ao longo do filme o contraste entre a Whitney que o mundo vê e sua visão de si mesma, não há porque buscar um plano assim sem acrescentar algum elemento narrativo.

No segundo ato, quase na metade do filme, tem um momento que quero destacar também, um que foi muito importante na vida real, quando Whitney é escolhida para cantar o hino dos Estados Unidos no Super Bowl. Essa é uma cena bem mais simples que eu quero destacar duas coisas, a primeira é o mau gosto visual que assombra essa produção, o estádio na volta da cantora todo feito em computação é muito gritante, quase amador e inútil, teria tantas soluções baratas para filmar isso que é incompreensível usar tanta computação gráfica para qualquer plano geral praticamente. Outra questão importante é a dificuldade de explicar qual relação da cantora com o “público”, se ela é amada ou odiada, se a imprensa gosta ou não gosta dela, nessa cena há um dos artifícios mais idiotas que existe, mostra as tais “pessoas comuns” nas suas casas assistindo Whitney fazendo comentários do tipo “ela foi número 1 na billboard” e “sabia que ela é de New Jersey?”, e depois todos vibram emocionados e cantam juntos o hino deles. Além de muito brega, isso acontece enquanto o roteiro tenta pintar uma relação conturbada da protagonista com a opinião pública, até poderia ser a intenção mostrar justamente a percepção da imagem dela com um contraste de amor e ódio, mas isso não acontece, pois contraste e contradição são coisas inexistentes em “I Wanna Dance with Somebody”. Em alguns momentos, Whitney fala sobre querer ser outra pessoa além da celebridade, mas nem um segundo da trama temos qualquer possibilidade de saber quem seria essa pessoa.

A terceira sequência que queria chamar atenção é um tanto mais complexa, e para dar algum crédito, é o único momento do filme que há algo que lembra um enredo, mesmo sendo uma bagunça. É basicamente todo terceiro ato, ou a “derrocada” de Whitney Houston. Há pelo menos uns cinco elementos importantes aqui e claro que nenhum deles é desenvolvido, mas são eles: a relação com seu marido, a relação com Robyn, a relação com seu pai, as drogas e a opinião pública tangenciam o que deveríamos perceber como os problemas da protagonista. A falta de agência de Whitney frente aos problemas de sua vida passa a ser algo que afeta sua carreira (sim, isso é um sinal de história de verdade) e o relacionamento complicado com o também músico Bobby Brown (Ashton Sanders). Porém, há um constrangimento da história em encarar a questão das drogas, em um ou dois momentos só que isso aparece e isso nos dá a impressão que é um problema menor em comparação com os outros.

A dificuldade de entender as relações entre os personagens aqui se faz um pouco mais importante, pois sem controle na sua vida, vemos Whitney no meio de embates entre Robyn e Bobby, e sem capacidade de lidar com a má gestão que seu pai faz do seu dinheiro. Infelizmente não há nenhuma boa cena para construir isso tudo, todos, todos, todos conflitos são verbais e explicam o que está acontecendo, não há nenhuma ação de nenhum personagem para nos mostrar os problemas de cada um e como isso afeta Whitney. E com o fim do filme se aproximando, sua melhor amiga a abandona, seu pai e ela param de se falar, seu marido tóxico só a faz mal (como em “Bohemian Rhapsody”, o roteiro usa um personagem para depositar tudo de errado que a protagonista faz), sua mãe some (literalmente, há um longo período que não temos nenhuma informação sobre ela) e o único personagem que trabalha pelo bem de Whitney é seu produtor Clive. Não preciso desenvolver muito para explicar porque é um problema que o único personagem do bem em toda trama também seja a única pessoa branca na vida da cantora, é ridículo um filme pintar todas qualidades para um velho branco produtor de Los Angeles (quem será que eles querem agradar em?), ainda mais grave considerando que Clive é um dos produtores do longa-metragem.

Já que o roteiro se proibiu de transformar Whitney Houston em uma personagem, a diretora procura outras estratégias para que o público torça por ela, e algumas das cenas mais desonestas e apelativas surgem nesse contexto, talvez a mais ridícula seja a protagonista deitada com a cabeça no colo de sua filha criança que a diz “eu tenho orgulho de você, mamãe”. Na penúltima cena, antes do desfecho trágico que o filme não nos mostra, Whitney canta a música “Home” olhando para um espelho, enquanto a câmera fecha em close nos seus olhos, mais uma vez uma alternativa canalha, pois faz isso para se esconder atrás de um momento supostamente bonito e tocante pois por 140 minutos não se importou em contar uma história, se tentou endeusar um talento e apagar uma pessoa.

Porque é isso que “Whitney Houston: I Wanna Dance with Somebody” faz, ao mentir que se trata de uma biografia apresenta alguns flashes da página de Wikipédia de Whitney Houston para fazer uma limpeza das suas contradições, da sua vida, dos seus relacionamentos, transforma tudo em questões fáceis, é um desrespeito há uma pessoa real, que existiu, que errou e que acertou, que tinha agência. Há uma cena em que ela expulsa Bobby de sua casa e depois eles seguem casados, tudo bem, é a dinâmica de um relacionamento tóxico, mas o filme sequer mostra as consequências disso, os desejos dela são ignorados pelo roteiro, ela é sempre uma vítima passiva de todos na sua volta. E depois de aguentar tudo isso, o espectador precisa ver 10 minutos de uma paródia da performance de Whitney no American Music Awards de 1994, performance que está disponível na íntegra no Youtube, então não tem nenhuma função aqui além de ocupar tempo. Quando sobem os créditos a tradicional montagem de fotos reais com informações é apresentada e, obviamente, todas as informações que aparecem são sobre seus prêmios e recordes e marcas de vendas, nada sobre suas relações pessoais, sobre sua família, comprovando o desrespito e a visão que os produtores desse longa tem da artista: vários cifrões.

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