Artigo | O Western Revisionista

“É uma desgraça matar um homem. Você tira tudo que ele tem e tudo que ele terá, para sempre.”

Grande parte (ou, uma parte grandiosa) da carreira de Clint Eastwood habita o velho oeste norte americano, desde os seus dias como ator de western spaghetti e dos seus primeiros trabalhos na direção até sua velhice, ele é um personagem e um diretor altamente identificado com o grande gênero do cinema hollywoodiano. Apesar dessa identificação tão profunda com o gênero, o que ele tem feito nos últimos 60 anos é repensar, ou revisar, o faroeste sobre as lentes do artista profundamente identificado com um código moral sensível e justo que ele é, e não só isso, tentando encontrar as contradições do americanismo no velho oeste, espaço onde foi cimentada a ideia de Estados Unidos expansionista e rico que impera até hoje.

Ao longo desse artigo vou explorar três westerns dirigidos por Eastwood, em diferentes décadas, em que ele interpreta o protagonista: “O estranho sem nome” (1973), “O cavaleiro solitário” (1985) e “Imperdoáveis” (1992). Além desses filmes, essa ideia também relaciona a sua visão do oeste americano com a Trilogia dos dólares (1964-66) em que ele foi protagonista e que lançou seu estrelato na telona. A escolha se justifica pela coesão temática entre as obras, que retratam o velho oeste como um espaço de injustiça e seu herói, o signo da masculinidade e da violência como um agente fundamentalmente quebrado no espírito por todos os signos que o geram.


O Estranho sem Nome

O primeiro western dirigido por Clint, e seu segundo longa como diretor, “High plains drifter” é uma ótima carta de intenções do comentarista do Velho oeste que Eastwood queria ser e foi ao longo da carreira. No filme, um estranho (que dá título a obra) chega a uma pequena cidade e executa uma vingança espiritual contra uma grande injustiça que todos cidadãos da localidade seriam responsáveis. Dois temas importantes para Clint aparecem aí: a injustiça, especialmente praticada por um coletivo ou comunidade, como o grande mal dos Estados Unidos e a capacidade do sobrenatural, ou espiritual, de interferir nas questões terrenas para reparar os erros humanos.

O personagem que ele interpreta também é um tipo fundamental para pensar no trabalho de Eastwood, o drifter. O homem que se movimenta e movimenta o espaço do velho oeste é fundamental para a história do gênero, mas a maneira como Clint o enxerga é bem menos heróica do que a maneira que um manual de cinema apresentaria o personagem. O drifter de Eastwood pode transformar e ser transformado de acordo com as condições que encontra, ele funciona como um vetor da moral para as comunidades onde chega, quer dizer, ajuda quando deve ajudar e condena o que há de errado.

Na cidade de Lago, cenário de Estranho sem nome, seu papel é corrigir uma injustiça cometida antes da sua chegada, quando um xerife foi condenado sem culpa e morte a chibatadas nas ruas da cidade. Sua chegada suscita de imediato a violência dos moradores da cidade, o que aponta para uma outra complicada relação entre os heróis dos westerns de Clint e o seu entorno: ainda que o velho oeste seja marcado pela violência, na tela só testemunhamos essa condição a partir do momento que o drifter entra em cena, como se ele mesmo fosse o portador do destino trágico.

Seguindo a estrutura tradicional do gênero, parte da cidade confia no estranho do título o dever de proteger a localidade de um assalto iminente, um certo paralelo com matar ou morrer se desenha aqui, o conflito do herói com seu ambiente é interagido. E o que se torna uma marca um tanto diferente em Estranho sem nome é que a ética prevalece sobre a moral. Não importa se as pessoas estão indefesas contra o ataque, o personagem principal tem que cumprir a justiça de fato, deixá-los a morte como punição pelos seus atos do passado.

Nesse sentido, o diálogo posto entre o diretor e o gênero já começa com um confronto de ideias. Será que o herói deve sempre salvar a cidade? Mesmo quando as pessoas forem más? Clint Eastwood já parece estar lidando com a violência que forma o oeste norte americano e suas consequências sociais. O seu personagem é propriamente um agente dos céus que resolve aquilo que a justiça dos homens não é capaz, nesse sentido, não cabe a ele defender a população de um grupo criminoso, pois todos são criminosos, provavelmente até o xerife executado antes da trama começar, que fica com o trabalho sujo de vingador divino.


O cavaleiro solitário

Doze anos separam o High plains drifter do Pale rider. Nesse tempo, Eastwood desenvolveu seus interesses enquanto diretor, mas o tema da violência na expansão norte-americana seguiu sendo um dos pilares do seu trabalho. E “O cavaleiro solitário” (1985) é o próximo filme que abordo aqui para pensar os novos elementos apresentados por ele nessa narrativa. Mais uma vez, Clint Eastwood é um homem que chega misteriosamente em um povoado que corre perigo, a diferença dessa vez é que são mineradores assediados por um poderoso barão da mineração para abandonarem suas casas.

O personagem sem nome chega invocado pela prece de uma adolescente para proteger sua família, montado em um cavalo e usando um colarinho clerical. Se em “O estranho sem nome” sua presença é uma maneira divina de punir uma comunidade, em “O cavaleiro solitário” ele é a intervenção espiritual que salva as pessoas da injustiça. A estrutura é bastante mais simples que a do filme de 1973, Clint retoma muitos aspectos tradicionais do gênero na maneira que conta a sua história. Seu personagem é a força que opera a justiça, mas a comunidade que protege é o espírito, as pessoas justas e boas que merecem ser salvas. Hull, o líder da comunidade, é um homem que cuida de uma família que não é a sua por amor, as pessoas são honestas e trabalhadoras.

O que Clint está revisando em “O cavaleiro solitário” é justamente a expansão para o oeste. O avanço do poder e do dinheiro sobre a vida das pessoas simples que foram para aquele espaço buscando uma vida melhor para suas famílias. O cuidado com a família faz parte dos valores que Eastwood valoriza na sua visão rígida do que é ter uma vida digna, e é um tema presente em boa parte do seu trabalho. E é isso que qualifica os moradores de Carbon Canyon a receberem a intervenção divina e proteção contra aqueles que ameaçam os verdadeiros valores norte-americanos, na visão do diretor.

No meio dos anos Reagan, do avanço neoliberal, Clint Eastwood faz um manifesto sobre as grandes corporações destruindo o modo de vida dos trabalhadores dos EUA, ele faz isso usando o espaço mais tradicional do cinema norte-americano, o velho Oeste.  “O Cavaleiro solitário”, chamado de preacher ao invés de drifter, nesse filme é a tentativa do próprio diretor de defender os valores de mundo que ele acredita e que são desconstituídos pelo neoliberalismo. 


Os Imperdoáveis

Falar de “Imperdoáveis” na obra de Clint Eastwood é um pouco batido, não só é seu principal western, é também o filme que elevou a atenção que seu trabalho recebeu da mídia, inaugurando o período de maior sucesso da sua longeva carreira. É o grande esforço dele de analisar a questão da violência no cinema, o tema mais importante da sua obra. A questão central para colocar o filme de 1992 na linha de revisões do autor sobre o western é justamente o exame do seu papel nesses filmes. Ele, enquanto um homem velho, retorna ao espaço dos limites dos EUA mais uma vez (e não será a última) para intervir em prol da justiça.

Se nos dois filmes que comentei anteriormente ele se faz presente como um espírito que defende uma moralidade contra a corrupção do dinheiro ou da violência. “Imperdoáveis” coloca seu personagem em uma situação diferente. Ele não é o homem sem nome que foi desde seus trabalhos como ator com Sergio Leone. Velho e aposentado dos tempos de cowboy, o protagonista ganha um nome, uma casa, uma família. Não se trata de um fantasma perambulando o espaço rural para intervir pela justiça, nem de uma estrela de filmes de faroeste, se trata de um homem analisando o seu passado e tentando abrir mão de toda violência que o levou até ali.

Nunca o seu personagem foi exatamente um herói, mas ele domava a natureza violenta do espaço (a expansão para o oeste foi uma conquista militar acima de tudo) com alguma expectativa de representar a moral. Em “Imperdoáveis” o seu personagem é tirado de casa e da aposentadoria após ser contratado por um grupo de prostitutas após uma delas ser atacada violentamente por um cowboy. O deslocamento do objeto da sua intervenção ainda mais para a margem, em Pale rider ele defendia uma família e em High plains drifter era um xerife o alvo da injustiça do mundo, estende as dinâmicas da violência para a periferia da vida no campo, ainda assim o seu personagem intervém em nome daquilo que é ético.

Na trama, o seu personagem se reúne a um velho parceiro dos dias de cowboy, interpretado por Morgan Freeman, para auxiliar um jovem quase cego que sonha em ser pistoleiro. Desde o primeiro momento, Eastwood sabe que não há nenhuma glória em matar os criminosos por um senso de justiça, que independente do que eles tenham feito, o peso da violência na alma de quem a comete. Mesmo assim, para proteger a sua família (seu motivo para ir é que precisa do dinheiro da recompensa para seus filhos) e porque ele é a garantia da ética no seu espaço, Clint Eastwood vai mais uma vez a ação.

O que acontece, como não poderia deixar de ser, é que ele consegue a vingança para as prostitutas, e para seu amigo (que é perdido no caminho), ele consegue o dinheiro que precisava e derrota sozinho todo o bando do vilão. Para isso ele precisa corromper sua alma novamente, no momento que ele realmente se torna o herói do western ele deixa de ter nome, deixa de ter família, deixa de ser um fazendeiro cuidando da sua roça, deixa de ser o homem bom, aquele que vive para reproduzir os meios de vida, e vira o homem que acaba com a vida dos outros (e com a sua ao longo do caminho). O fato de ele voltar ao homem sem nome como um homem velho, mostra como ele carrega os mesmos dilemas, as mesmas contradições, as mesmas dúvidas mesmo quando já não é mais o jovem galã.

O cowboy em Hollywood

Dúvida e contradição são duas palavras centrais para interpretar a relação do Clint com o western, mas não só com o gênero, com a indústria cinematográfica dos Estados Unidos inteira. Ao final de “Imperdoáveis” descobrimos por um letreiro que seu personagem foi para a Califórnia. No plano narrativo isso pode dizer que ele foi procurar uma vida nova para sua família com o dinheiro que ganhou, mas que também continuou expandindo a fronteira dos Estados Unidos para o Oeste, novamente o americano como um conquistador. No esquema geral do trabalho do Clint, essa é a sua ida para Hollywood no momento em que seu cinema viveu o auge da sincronia com a indústria.

Ele nunca abriu mão de questionar seu papel nesse mundo. Seus filmes sempre estão em conflito com o que quer que esteja acontecendo no cenário político norte-americano, mas nunca apenas para fazer um contraponto ou declarar sua opinião. Ele realmente questiona a maneira como se relaciona com o mundo. Sua última aventura no velho oeste, a primeira desde “Imperdoáveis”, foi em 2021 com “Cry Macho”. Nesse drama, ele ainda mais velho, precisa voltar ao papel de cowboy para atravessar a fronteira do México e resgatar uma criança. Nesse processo, mais uma vez ele percebeu que suas velhas visão de mundo, um homem que domou o Oeste talvez não tenham o valor que ele sempre acreditou.

Com muitas perguntas e poucas respostas, o cinema de Clint Eastwood explora diversos territórios norte-americanos, inclusive as suas guerras no exterior, e diversos elementos daquilo que ele acredita serem os pilares dos Estados Unidos: justiça, liberdade, comunidade, trabalho. Por isso o seu western é tão fundamental para compreendermos sua obra. Porque ele desafia o que está posto tradicionalmente no gênero não porque não gosta de cowboys, mas porque gosta muito e quer questionar o papel da masculinidade, do colonialismo, da violência e da destruição na formação do cinema dos Estados Unidos.



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