CAHIERS | Honkytonk Man

Notas do tradutor:

Texto publicado em 1983 por Oliver Assayas, na Cahiers du cinéma #353. Impossível não elencar textos da Cahiers, talvez os primeiros a compreender e considerar Eastwood um autor importante ainda durante os primeiros estágios de sua carreira, e este do diretor Oliver Assayas evidencia como os protagonistas de Eastwood por vezes representam a ideia do sonho e do ícone americano, mas também do americano médio, o espectador que só se aproxima da glória pela tela do cinema.


Uma forma um pouco evasiva de tratar Honkytonk Man seria dizer — o que aliás é verdade — que “depois de ter sido John Wayne, Clint Eastwood agora se acha John Ford”. A gente até poderia reunir alguns indícios convincentes, apontar citações precisas, evocar o início do filme, uma nuvem de poeira que remete explicitamente a As Vinhas da Ira. Sim, poderíamos fazer tudo isso, mas ainda estaríamos evitando a questão central: Clint Eastwood é agora um autor por completo. Porque hoje não se pode mais ver nele apenas um ator que virou diretor por acaso ou talento. É preciso reconhecer, após Honkytonk Man, que ele é um pouco mais do que isso.

Há vários anos, ele alterna entre projetos pessoais e veículos puramente comerciais, destinados a manter sua imagem de marca. Após o fracasso de Bronco Billy, veio Any Which Way You Can (dirigido por Buddy Van Horn) e Firefox; depois de Honkytonk Man, ele está filmando um quarto episódio das aventuras do inspetor Harry. A teimosia com que Eastwood alterna filmes pessoais e francamente comerciais, destinados a um público amplamente popular, parece o contraponto de todos os valores que Hollywood hoje em dia preza ao máximo: não o de um comediante egocêntrico, mas o de um cineasta íntegro ou de um produtor vingativo.

Esse cinema familiar de canto de fogueira, vagamente elegíaco e totalmente impregnado da paisagem americana, não é uma lição de moral nem uma nostalgia do velho Hollywood — é simplesmente o seu próprio. E isso agora está claro, no momento em que ele escolhe mais uma vez a veia de Bronco Billy, mas, ao contrário, aprofunda-a, faz dela o centro da sua atividade, por vezes mercenária, mas jamais desiludida, e que só visa proteger seu canto de território. Esse canto de terra. Esse pedaço de solo. Como Cimino, Eastwood não fala de outra coisa. E Honkytonk Man se abre, justamente, sobre a terra que preenche todo o espaço de um filme inteiramente colocado sob o signo da poeira, do ar, dos elementos. Um solo seco, magnífico, onde a morte começa, onde a terra dá nascimento à música. Como se o som formasse a alma. Um cantor country, acompanhado por seu sobrinho, um adolescente, atravessa a América profunda do Oklahoma até Nashville, onde deve fazer um teste para o “Grand Ole Opry”, num espetáculo televisivo muito popular. Seus pulmões estão corroídos pela tuberculose, são seus últimos anos de vida, e são essas últimas forças que ele reúne para fazer essa viagem. A audição falha porque os ataques de tosse não lhe deixam fôlego suficiente para cantar com segurança. Por sorte, um produtor de discos o percebe, faz com que ele grave suas canções, após o que não resta mais nada ao personagem interpretado por Clint Eastwood senão morrer.

Não se pode dizer de forma mais simples: a música — a arte, se quiser — é muito complexa, “nascida da poeira”, acumulada ao longo da viagem. Essas canções, então, nascem dos desertos, dos bares, nascem de corações miseráveis, de aventuras sentimentais que não são aventuras no sentido das histórias. Elas nascem, veja só, de observar as pessoas viverem. Cada dia que passa, cada novo passo, adiciona uma nota a uma canção que está sendo composta. O músico não é um personagem romântico, ele é antes, literalmente, um trabalhador. O espírito do país, o coletivo, se mistura à substância individual para dar origem à canção. E, de forma lógica, a vida se humaniza na medida em que ela se transforma em música. Através de suas canções, que permanecerão anônimas e esquecidas, esse corpo natural que é o país volta à memória coletiva.

Clint Eastwood é filho dos Estados Unidos. Como o seria um cineasta regional, menos se Hollywood não tivesse existido. Ele sabe que, para produzir uma música que ele ama, é preciso não apenas ilustrá-la com imagens, mas impregnarse de tudo o que ela carrega. Todo o dilema moral e social se expressa nessa canção, e em cada instante do seu filme se mantém uma tensão de integridade que estrutura seu relato. E mesmo o tom do filme, um pouco desencantado, um pouco melancólico, é o que permite ao espectador se aproximar daquilo que o filme tem de referência musical.

Clint Eastwood fez ali um dos seus mais belos filmes com tudo aquilo que a inspiração do cinema americano independente — do comércio às ideias — há muito tempo significava ao declarar sua despedida.

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