CAHIERS | A Veia Temporal e a Demagogia Libertária

Notas do tradutor:

Texto publicado na Cahiers du cinéma n°495, em novembro de 1995. Moullet descreve algumas etapas na reconstrução da figura de Eastwood por meio de seus filmes, sistematização ilustrada com os pontos de vista e abordagens adotados pelos filmes.


Ultimamente, Clint Eastwood tem nos revelado um rosto queimado de sol que lembra o de Gary Cooper, cujo nome, aliás, ele toma emprestado em As Pontes de Madison (dirigido por Clint Eastwood). Mas é sobretudo John Wayne que ele faz pensar. As carreiras de Wayne e Eastwood são ambas construídas sobre a destruição da imagem de marca e do mito próprios ao ator. Wayne era um gigante, um ator muito físico, esportivo, sempre recuperável da queda do cavalo. Mas o essencial de sua obra recente gira em torno do envelhecimento e da doença. A trajetória de Eastwood segue o mesmo caminho. Além disso, antes de obter sucesso como cineasta, ele fez também a travessia do deserto das séries Z do estúdio Republic para um, depois dois episódios de uma série respeitável (como Tyrone Power ou Victor Mature, por exemplo).

Violento, machista, mas raramente jovem, solitário e limpo, Eastwood só se revelou a nós — e isso em particular nos filmes de Leone e Siegel. Seus personagens, sobretudo os de Siegel, tinham algo cínico, desagradável, até sórdido; sua atuação na tela se situava essencialmente em um plano físico, muscular, e era frequentemente plana, quase débil. Um quarto de século atrás, falava-se de Eastwood como hoje se fala de Van Damme.

Todo o trabalho de Eastwood desde então tem consistido em destruir essa reputação. Desconstrução que se operou em três etapas sucessivas. A primeira consistiu em sair do circuito dos westerns-spaghetti e reencontrar sua identidade nacional. Não esqueçamos que Eastwood é o único ator dos Estados Unidos que conquistou seus galões de estrela com filmes não-americanos. A segunda foi o acesso à direção, algo surpreendente, como se ele fosse Tyrone Power, Victor Mature ou Arnold Schwarzenegger. A terceira é a direção de filmes em que ele não atua (Breezy, Bird). O velho sonho dos atores, Chaplin (A Opinião Pública), Welles (The Magnificent Ambersons), Jerry Lewis (One More Time), Woody Allen (Interiores). Quarta etapa: o acesso a gêneros diferentes do filme de ação, policial ou faroeste, que originalmente lhe eram proibidos, como a simples comédia dramática (Breezy, As Pontes de Madison) ou a biografia de artista (Honkytonk Man, Bird, Coração de Caçador). Quanto aos três gêneros de base, eles tornam-se, pouco a pouco, pretextos para variações que nos levam bem longe das regras do jogo: depois dos convencionais O Estranho sem Nome e A Sanção, bastante decepcionantes no final das contas, descobrimos o irrealismo impressionante de O Desafio das Águias, que transcende o policial, e também de Firefox.

Quinto movimento: a transformação do personagem e do ator. Ora esse ex-durão interpreta os desajustados (Honkytonk Man), ora ele leva a mitificação inicial tão longe que ela se torna uma abstração, impedindo qualquer identificação com o herói. Em O Cavaleiro Solitário (Pale Rider), Eastwood é filmado quase o tempo todo contra a luz, e os raros traços de seu rosto que poderiam ser distinguidos são ocultados por um enorme chapéu e uma espessa barba. Poder-se-ia até supor que Eastwood usou um dublê, para se dedicar melhor à direção. Pouco provável... Será então o desejo de esconder possíveis limitações como ator? Ou será que ele quer nos provar que o peso de um ator cresce justamente por sua ausência, sua imobilidade, sua transparência? A partir de O Cavaleiro Solitário, o que mais se vê no rosto de Eastwood é sua impressionante veia saliente do lado direito da testa. Ela expressa uma vida marcada pelas provações, pelos anos e pela fragilidade da existência humana: temos sempre a impressão de que essa veia vai explodir, ameaçando a vida do pistoleiro muito mais do que seus adversários armados até os dentes. Essa veia temporal, com um pequeno trabalho conjunto do maquiador e do operador de câmera, poderia muito bem ter sido disfarçada — como exigiriam todas as estrelas do mundo, exceto Eastwood. Parece até que ele faz de tudo para que a vejamos, e para que vejamos apenas ela. Nas entrevistas transmitidas pela televisão durante o Festival de Deauville, ela nem sequer era perceptível. Provavelmente foi a iluminação intensa dos sets de filmagem hollywoodianos que funcionou como uma espécie de radiografia. Mas tudo isso é, evidentemente, intencional, já que Eastwood sabe muito bem abrir mão da luz quando quer. Do mesmo modo, em As Pontes de Madison, ele parece buscar, acima de tudo, envelhecer a si mesmo. A maioria dessas transformações é bem conhecida, mas acabamos, de tão evidentes que são, esquecendo delas — esquecendo sua notável acumulação, a escalada contínua de Eastwood na desconstrução de si próprio.

A sexta reviravolta é a mais surpreendente. Clint Eastwood não apenas renuncia à ideologia implícita presente em suas primeiras atuações — e até mesmo em algumas de suas primeiras direções (O Estranho Sem Nome) — como também toma o caminho oposto. Muito distante do xerife ultraconservador e racista de Meu Nome é Coogan (de Don Siegel), ele filma com compaixão, ternura e admiração um músico negro viciado em drogas (Bird), em plena era Reagan, quando o consumo de entorpecentes começava a ser severamente condenado nos Estados Unidos. Enquanto todo Hollywood (e o próprio Eastwood em Firefox ou A Revanche) se deleita com um ritmo de montagem frenético, ele toma todo o tempo necessário em As Pontes de Madison, que, visto de fora, parece uma mistura entre A Ponte de Waterloo e Marty.

A que corresponde essa surpreendente e perpétua negação de si mesmo? O personagem que Leone, Siegel e os outros lhe fizeram interpretar estaria nos antípodas do verdadeiro Eastwood? Pode-se supor que sim, ao observar certa generosidade na construção dos personagens femininos que aparece já em suas primeiras direções (Perversa Paixão, Breezy). Também é possível defender a tese de uma evolução pessoal. Mas eu estou mais inclinado a pensar que se trata de um jogo — um jogo de idas e vindas, ao mesmo tempo comercial e estético — baseado no desejo de surpreender, de não cansar o público, adotando sempre o princípio do contra-emprego, fazendo sistematicamente o filme que menos se esperava dele, alternando o risco com o sucesso garantido, como fazia Chabrol antigamente. Os cineastas não gostam da ideia de que um crítico possa resumir toda a sua obra em poucas palavras — isso os confrontaria diretamente com a vaidade e com a relativa insignificância do trabalho de qualquer artista: o rei está nu. Pois bem, pode-se dizer que Eastwood foi quem mais fez para escapar de tais simplificações. Sua carreira é um verdadeiro gesto de desprezo à crítica apressada. Ele está próximo, ao mesmo tempo, de Henry Hathaway e de Orson Welles. É assim que podemos explicar as contradições absurdas oferecidas pela cronologia: O Estranho Sem Nome é do mesmo ano que Breezy. Depois de Firefox, vem Honkytonk Man, seguido por Impacto Fulminante. Bird surge logo após O Destemido Senhor da Guerra. Dia e noite. Há um certo humor nessas justaposições insolentes, que parecem até expressar um certo desprezo por um dos dois lados — quero dizer, pelo filme de fórmula segura.

O mais surpreendente é que Eastwood parece sempre reencontrar a si mesmo através dessa fantasia um tanto esquizofrênica. Bem, quase sempre. Quando ele passa do campo conservador para uma orientação mais permissiva, o descarrilamento ameaça. O esquerdismo de Eastwood às vezes parece um tanto volitivo demais, esquemático, sobreposto, emprestado. É claro que ficamos estupefatos quando Dirty Harry, o policial durão e incorruptível, liberta a assassina porque, até aquele momento, os homens já haviam causado sofrimento suficiente a ela — e às mulheres em geral (Impacto Fulminante). Essa reviravolta causa um choque, que seria talvez menos impactante se não conhecêssemos a imagem construída por Eastwood e por Dirty Harry (o que mostra como é tolo julgar um filme isoladamente, fora de contexto). Esse choque certamente joga a favor do filme,
mas o artifício continua sendo um tanto questionável. É uma maneira tão artificial quanto elegante de puxar a atenção para si, de conquistar a simpatia do público.

Pouca dessa demagogia libertária fácil aparece em As Pontes de Madison. O filho, Michael, é um caipira. No início, o personagem é exageradamente caricaturado, de modo a atrair para si os risos sarcásticos do público médio mais esclarecido, que assim se sentirá muito superior. E a evolução de Michael rumo à tolerância ocorre — talvez como resultado do corte de cenas na montagem — da maneira mais artificial possível, sem nenhuma transição. É apenas um detalhe em um filme quase irrepreensível.

Mas onde a coisa realmente pega é em Um Mundo Perfeito, onde o personagem de Butch visa claramente a despertar certa simpatia do público: tenta-se lançar uma dúvida sobre a natureza criminosa de seu passado. O novo visual libertário do anticonformismo sistemático atinge seu auge na cena final. A piscadela ideológica, na verdade, é tão pouco original que todo mundo já terá adivinhado, um quarto de hora antes do final, que o policial malvado, com seu rifle com mira telescópica, acabará massacrando o pobre Butch desarmado — apesar das ordens do bom Clint, que não terá outra saída senão dar um soco na cara do atirador, com a simpatia imediata de toda a plateia.

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