ARTIGO | Princípios Modernistas

Texto de Diego Quaglia

Desde que começou a atuar, a vontade do ator Clint Eastwood de se tonar um diretor, ir para atrás das câmeras, ser um autor cinematográfico (mesmo sem admitir isso verbalmente) e fazer filmes existia. Sua observação e fascínio pelo atrás das câmeras era visível desde que atuava na televisão, onde observava e perguntava sobre todo o funcionamento da coisa nas produções em que era interprete. Acabou caindo na atuação por meios atípicos, sendo um jovem perdido que se achou nesse meio, não tinha recursos técnicos de interpretação, fazendo sucesso inicialmente pelo seu carisma, sua presença, beleza física e pela inteligência de administrar isso já que no começo da sua carreira/seu estrelato ele não era particularmente apaixonado pelo oficio de ator, diferente do processo de direção que ele via como estimulante desde que o conheceu e sempre foi atrás de estudar por conta própria.

A meta de ser um cineasta nunca foi novidade: Eastwood ajudou a desenvolver toda a caracterização do Homem Sem Nome junto com Sergio Leone quando o conheceu, já chegou nos seus tempos de astro televisivo da série Rawhide a recusar dirigir um episódio da série pela falta de possibilidade de controle total na função, o que lhe desinteressou e o fez sentir um medo de “se queimar” nesse primeiro trabalho atrás das câmeras. Por conta disso, montou a produtora Malpaso depois do seu período na televisão, e com Leone na Itália, justamente para ter mais liberdade criativa do que fazer como ator e ele demonstrava cada vez mais necessidade de controle pelas produções que ele protagonizava e assinava como produtor. Em 1971, Clint idealiza, produz, colabora no roteiro e dirige uma cena do mega sucesso Dirty Harry: Perseguidor Implacável (1971), o filme de Don Siegel que o levou a posição de um dos grandes astros de Hollywood. Ao mesmo tempo Clint dirige um documentário sobre o filme O Estranho Que Nós Amamos (The Beguiled), mais um longa da sua parceria com Siegel e finalmente estreia como diretor em Perversa Paixão (Play Misty for me).

O auge da carreira de Clint como astro de cinema curiosamente foi durante os anos da Nova Hollywood e é curioso pensar como mesmo não sendo dessa tendencia – ele é muito mais um “outsider” – seus filmes desse começo incorporam certos traços desse momento histórico cultural, desenvolvendo diálogo com outros representantes como Michael Cimino, John Milius, Steven Spielberg, Martin Scorsese, Paul Newman, Francis Ford Coppola e, claro, o próprio Don Siegel que nessa fase foi absorvido por eles (assim como outro ídolo dele, John Huston). A herança de Siegel, seu mentor e principal “pai cinematográfico”, é tão evidente como se alguns dos primeiros filmes de Clint como diretor fossem uma continuidade direta dos filmes de Siegel: o mesmo gosto pelo contraste de luz e sombras que Clint herdou e com os anos levou a níveis absurdos, a sobriedade visual, a secura, a discrição cênica criativa e rigorosa, o fascínio pelo comportamento sombrio, pela violência, pela dissecação do comportamento masculino, das temáticas de justiça e o prazer pelo questionamento. O próprio fotografo Bruce Surtees – que leva uma velocidade de movimentação de câmera e uma crueza muito própria do movimento da Nova Hollywood e do seu trabalho em particular para o estilo de Clint – que trabalha com Siegel e passa a trabalhar com Clint dá ainda mais essa sensação de continuidade. O fato de Siegel interpretar um bartender que tem uma relação próxima com o protagonista feito por Eastwood em Perversa Paixão já dá de modo muito claro uma espécie de “passagem de bastão” entre os dois amigos e parceiros.

Perversa Paixão é meio que um esboço de muitas característica que veríamos com os anos na obra de Eastwood, mas um belíssimo esboço ao contar a história de um DJ de uma rádio (interpretado por Eastwood) perseguido por uma stalker (Jessica Walter) com quem ele teve um caso: é um thriller – onde ele meio que cria a estrutura de Atração Fatal (Fatal Attraction) com momentos surpreendentes de delicadeza e romance, um tom calmo, intimista, contido, e um senso de humor sarcástico, mas também brutal, já demonstrando seu bom olho para paisagens, para criação de personagens e escalação de elenco (Jessica Walter, fantástica é um achado), além de seu fortíssimo interesse musical, a temática de ambiguidade, o questionar e demonstrar fascínio com a própria figura de Eastwood, sua persona e observar a masculinidade com olhos questionadores. Porém o filme também é acompanhado de traços visuais e de estilo maneiristas e mais carregados como uma influência de Hitchcock (assumidamente admirado por Clint) que não são tão lembrados em comparação com o classicismo e a suavidade costumeira de Eastwood, mas pontualmente sempre voltam á sua obra como em Impacto Fulminante (Sudden Impact, 1983) ou Poder Absoluto (Absolute Power, 1997). O filme é cercado de símbolos da contracultura e da juventude hippie que depois retornariam em Interlúdio de Amor (Breezy, 1973). Muito se diz do Clint Eastwood como um "classicista" e como um dos exemplos – talvez o maior e quem sabe até o último – ainda vivos de cineastas que seguem uma linguagem cinematográfica clássica: coordenar uma filmagem, priorizar uma unidade de estilo, uma encenação e uma decupagem que evidencie um destaque para a narrativa, a ambientação e o trabalho dos atores de modo discreto e sóbrio mas preciso e ativo potencializando esses elementos emocionalmente e criativamente na sua forma.

E obviamente ele segue essa linha com um rigor absoluto, uma sensibilidade e imaginação muito naturais do que capturar e como capturar chegando na essência dos seus personagens e das suas cenas, mas da mesma forma que ele conscientemente e constantemente tensiona os seus filmes de pontos de vistas políticos e sociais ambíguos que conversam entre si, ele também tensiona a sua abordagem clássica e intimista – por vezes seca ou crua mas sempre bastante suave e calma até nas suas maiores demonstrações da atração inabalável que tem pelo trágico, pela intensidade e pelo melancólico – com toques de elementos extremamente modernistas e que intervém no filme de maneira pontual porém recorrente, contrariando a totalidade de uma abordagem clássica. Tanto Perversa Paixão quanto Breezy são filmes que demonstram como, na obra de Clint, dentro do seu viés clássico e do seu projeto particular de retomar gêneros da Velha Hollywood para a contemporaneidade – como bem diz o crítico espanhol Miguel Marías –, existe uma conexão constante com traços e elementos modernistas. Perversa Paixão foi escrito em conjunto entre Dean Riesner, Eastwood e Jo Heims, uma roteirista que ficou amiga de Clint quando trabalha na Universal e que passou a colaborar em projetos seus sendo uma das primeiras e mais primordiais parceiras. Ela inicialmente escreveu o roteiro sozinha, Clint leu, se interessou, a convenceu a vender o filme para a Universal por um bom dinheiro, ela fez isso, o estúdio engavetou o roteiro, mas Clint fez um acordo com eles de três longas–metragens, então o recuperou e o reescreveu em conjunto com Riesner, outro parceiro.

Heims tinha o desejo de falar de casais com diferença de idade e discutir contrapontos/conexões entre um casal de gerações muito diferentes e visões muito diferentes. Eastwood novamente se interessou pela ideia, os dois colaboraram no roteiro e a Universal aceitou fazer/distribuir o filme como um “favor” a Eastwood já que ele próprio sempre considerou que um romance tão intimista não seria um sucesso de bilheteria. Inicialmente o papel de William Holden foi pensado para Eastwood, mas tanto Heims quanto o próprio diretor acharam que ele era novo demais para o tipo. Porém o Frank Harmon de William Holden é basicamente o típico de protagonista atormentado e melancólico dos filmes dirigidos por Eastwood, além disso ele também é um tipo que o próprio Eastwood passaria a criar pra si mesmo e interpretar com o passar nos anos filmes que viria a dirigir. Breezy é um filme sobre uma jovem hippie impulsiva e sem destino de espírito livre que se relaciona com um cinquentão solitário e metódico do mercado imobiliário, que fechou seu coração para o amor com medo de se machucar. Dois opostos que se conectam, algo que sempre interessou Clint. Depois de um thriller e um faroeste, Clint entra no território do drama romântico (que ele voltaria anos depois na sua obra prima suprema, As Pontes de Madison) e o mais importante, já se apresenta como o cineasta humanista que se consolidaria nos filmes seguintes. O tal Clint “sensível e ambicioso” como diretor sempre existiu, só demorou pra ser amplamente descoberto e compreendido.

Como todos os seus filmes, ele parte de premissas simples para traçar com elas análises humanas, existencialistas, complexas e sensíveis, examinando como independente das diferenças entre as pessoas em suas características, hábitos e visões de mundo, existem vazios, sentimentos e dores universais. E existe ao mesmo tempo uma fé e um questionamento nessas duas visões de mundo na exata mesma medida. É um filme que já apresenta um dos temas mais importantes da carreira do Clint como autor: a fascinação, atração e conexão pelo que é diferente de você. Seu encanto pelos “outsiders”, e sua percepção que a maioria das pessoas em alguma estância é uma “outsider”. A contracultura da Nova Hollywood está misturada com um melodrama calmo, suave, límpido e de um naturalismo tão cru quanto o personagem de William Holden, mas tão poético e solar quanto a figura de Kay Lezy. Os diálogos escritos com a roteirista Jo Heims, no geral, mas principalmente nas conversas de Breezy e Frank, são sempre belíssimos e certeiros, e a inteligência com que Clint observa, narra e encena a vida de seus protagonistas, os laços que eles criam, seus pequenos atos e refletindo quem eles são internamente por decisões tão sutis está aqui desde sempre.

Também como é típico em seu cinema, não existem julgamentos ou condenações sobre os atos dos seus protagonistas, mas também não existe qualquer coisa que exima eles, os glamorize ou esconda suas contradições. Pelo contrário, como em todo filme do Clint, ele analisa e expõe de maneira frontal as contradições dos seus personagens e daquele relacionamento. A coisa vai muito além das aparências, de um fetiche, de uma fantasia, de uma atração sexual que une os personagens (não temos uma jovem sedutora e um velho babão que a objetifica, a coisa vai muito pelo contrário disso), é um estudo comportamental e humano que nem defende aquele relacionamento, mas também não o demoniza, só o registra como o que ele é. Se Breezy revela momentos de muita inteligência e maturidade, ela também é ingênua e ilude a si mesma, tão solitária quanto o companheiro que encontra, mas em negação quanto isso. Frank, o cínico que mente para si mesmo ter aceitado esse estado, também é capaz de se mostrar alguém empático e sofrido.

É um filme melancólico, mas também leve, emotivo, engraçado (a capacidade de rir de si mesmo do Eastwood sempre me impressiona, e a piadinha de metalinguagem do O Estranho Sem Nome é ótima nesse sentido), cheio de lirismo e sarcasmo, que passeia por esses diversos tons em diferentes cenas – ou na mesma sequência. William Holden está fantástico como o primeiro protagonista tipicamente Eastwoodiano que não é interpretado pelo próprio (como diz Breezy se referindo a ele: “Frankie finge muito que não é legal, mas sim ele é legal, sei lá as vezes ele tenta ser bem irritante, mas aí ele muda e faz algo bem legal”, uma frase que serve pra muitos dos tipos dos filmes do Clint e pra tantos de nós na vida) e Kay Lezy simplesmente radiante como uma das primeiras protagonistas femininas Eastwoodianas. A primeira cena de sexo – marcada por sombras fortes, uma predileção sempre evidente de Clint – é de uma delicadeza total.

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