ARTIGO | A Ambiguidade Moral do Herói Americano em Um Mundo Perfeito
Ao ver Um Mundo Perfeito (1993) pela primeira vez fui totalmente precipitada. Jurei de pé junto que seria apenas mais uma produção perfeita pra “Sessão da Tarde” – estava numa vibe de assistir algo que não me fizesse pensar! – e que eu pudesse me divertir e esquecer problemas rotineiros. Um dos “erros” que cometi, e que não me arrependo de modo algum, foi o fato de que apenas julguei o filme pelo pôster, sem ler a sinopse e ao menos ver quem dirigiu. Nos primeiros minutos percebi que estava errada, e já era tarde: o filme não me oferecia heróis ou vilões claros, nem respostas fáceis. Era uma história sobre fugas, sim, mas muito mais sobre encontros e afetos inesperados.
Se Os Imperdoáveis (1992) já apontava para uma desconstrução dos arquétipos clássicos do western, foi com este filme que Eastwood deu o primeiro passo firme em direção a uma temática que se tornaria sua predileta nos anos seguintes: a ambiguidade moral do ser humano.
A narrativa acompanha Butch Haynes (Costner), um criminoso foragido que, após escapar da prisão, sequestra o menino Phillip Perry (T.J. Lowther), de apenas 8 anos, durante uma invasão domiciliar. A fuga improvável e o tempo compartilhado entre os dois se transforma numa jornada emocional – um road movie sobre paternidade, redenção e sobre os traumas que o meio pode nos infligir. O que poderia facilmente descambar para uma história de “Síndrome de Estocolmo” se revela, ao contrário, em uma construção sensível da relação entre dois personagens carentes da mesma coisa: um vínculo afetivo.
AFETO TORTO DE Relações improváveis
Kevin Costner como Butch Haynes me tocou de um jeito que poucos personagens conseguem. Ele é um fugitivo, um homem marcado pela vida dura e pelas escolhas erradas, mas, ao mesmo tempo, tão humano, tão perdido quanto Phillip, um menino que ele acaba levando junto na fuga. E ali, naquela relação improvável entre um adulto falho e uma criança reprimida, é revelado um carinho meio torto, uma tentativa de amor numa estrada cheia de incertezas.
Essa dualidade também se aplica ao retrato das famílias: estruturas falhas, hipócritas, que ao invés de acolher, traumatizam. O garoto, por exemplo, é criado em um lar regido por uma rígida moral religiosa, que o impede até de se fantasiar no Halloween – simbolicamente mostrado logo na cena de abertura, quando a mãe o afasta das outras crianças mascaradas. Em Butch, Phillip encontra pela primeira vez um interlocutor emocional, alguém com quem pode dividir seus medos, desejos e culpas – e que, paradoxalmente, é o único adulto a respeitar seus limites.
sutileza em retratar a américa
O filme se passa no Texas de 1963, numa América dividida entre o velho e o novo — e essa tensão histórica se infiltra na narrativa. Eastwood, que também interpreta o xerife Red Garnett, constrói um drama onde heróis e vilões se confundem, e a liberdade é mais uma dúvida do que uma certeza.
Sua direção aposta no silêncio e na observação: a câmera discreta, a ausência de uma trilha sonora grandiosa e os longos planos abertos convidam à contemplação. A fotografia de Jack N. Green capta bem essa proposta, equilibrando o sombrio das fugas com a beleza melancólica das paisagens texanas. O roteiro de John Lee Hancock ancora a história numa complexidade emocional rara, tecendo críticas à falência das instituições e à ausência paterna. O diálogo em que Red revela ter sabotado o destino de Butch é particularmente revelador.
Costner e Lowther brilham: ele, como um foragido capaz de ternura; o garoto, como alguém que encontra no sequestrador o afeto que lhe faltava. Sua decisão final, ao impedir Butch de cometer um assassinato, é uma dolorosa afirmação de autonomia — e o reflexo trágico de tudo o que aprendeu na estrada.
Entre liberdade e amadurecimento
Há quem torceu por Butch — um criminoso, sim — e entendeu o medo e a curiosidade de Phillip, que nunca tinha visto o mundo além das regras rígidas e sufocantes de sua casa. Em uma das cenas mais simples e belas, Butch ajuda Phillip a roubar uma fantasia de fantasma para o Halloween, em um pequeno gesto que abriu uma porta para que o garoto sentisse a liberdade pela primeira vez. E é muito fácil sentir o que ele sentiu – o doce sabor do proibido, a emoção de descobrir um mundo que não era feito só de medo.
Enquanto a perseguição se desenrola, Clint Eastwood não perde tempo com cenas frenéticas de ação. Ele quer que a gente viva cada momento, que sinta o cansaço das horas na estrada, o calor do deserto, o silêncio entre as palavras. Porque, no fundo, Um Mundo Perfeito não é um filme sobre fuga, mas sobre encontros — com o outro, com o passado, com nós mesmos.
A cena final é um dos pontos altos do longa. Após ser baleado pela polícia, Butch agoniza e morre diante de Phillip, que opta por voltar para ele em vez de correr para os braços da mãe. O close no rosto do menino, neste momento, é uma síntese perfeita do amadurecimento precoce e da consciência de tudo que viveu. A montagem ágil que se segue, cortando entre os olhares angustiados de Red, Sally e da mãe, é o último aceno de Eastwood ao impacto que aquela tragédia causou em todos que a cercaram.
Um filme sobre perguntas difíceis
O mais marcante do filme é como essa ambiguidade moral se empresta ao espectador. Por que me peguei torcendo por um fugitivo? Por que me emocionei quando ele cuidava daquele menino? O que realmente entendemos sobre justiça e redenção? O filme não quer julgar Butch, nem fazer dele um santo. Ele é um homem feito de feridas e erros, um produto de uma vida que o abandonou cedo demais. Quando ele reage com violência a quem maltrata crianças, eu fiquei dividida: isso é vingança ou justiça? É certo ou errado?
Essa complexidade ensina que as pessoas não são simplesmente boas ou más — somos uma mistura dolorosa disso tudo, e é aí que mora a humanidade.
No fim, Um Mundo Perfeito teve a intenção de ser apenas um filme honesto. Um filme que encontra beleza na imperfeição, na dor, no afeto torto entre um bandido e uma criança que nunca soube o que era amor.
O filme termina sem grandes respostas, com um silêncio que pesa e uma sensação de perda. Mas essa ausência de certezas é o que o torna tão poderoso. Ele nos lembra que a vida é assim: cheia de feridas abertas, encontros inesperados, desejos contraditórios. E, às vezes, mesmo que por pouco tempo, podemos tocar algo que se pareça com amor.