DYLAN E O MITO: O NORTE COMO FORMA E NÃO COMO DIREÇÃO
Como explicar um conhecimento que parece anterior, ancestral?
Como explicar uma pessoa guiada por uma bússola cujo Norte se revela apenas para ela? Com um passado cheio de lacunas e comportamento reservado, a ideia de mito que se formou ao redor de Bob Dylan é muitas vezes justificada como um resultado do seu esnobismo. Contudo, a ausência da persona nas suas composições vem de uma noção própria e natural de que a arte não deve ser um produto, mas um condutor. “All the truth in the world adds up to one big lie”. A indiferença quanto à “verdade” revela um compromisso íntimo e uma fé inabalável no processo da concepção artística, sendo Dylan um verdadeiro artesão.
O folk, sustentado pela tradição oral, viu uma nova possibilidade de existência na modernidade com a chegada da mídia física, e as primeiras faixas de Dylan eram diretamente baseadas na estrutura de canções tradicionais. T.S. Eliot dizia que toda arte se apoia na tradição e o artista amplifica seu poder ao buscar elementos do passado para se expressar. A Hard Rain’s a-Gonna Fall (The Freewheelin’ Bob Dylan, 1962) baseia-se em uma antiga canção do folclore anglo-escocês, “Lord Randall”, e narra um diálogo entre um filho à beira da morte e sua mãe. “Where have you been all the day, Randall, my son?”, da versão original, se torna “Oh, where have you been, my blue-eyed son?” - o personagem rural, distante, agora pode ser qualquer jovem. Ao longo da letra, Dylan traz uma camada mais profunda ao utilizar esse choque geracional para tecer a história - a juventude está a escancarar e cobrar dos mais velhos o presente que estão vivendo.
Fundamentado pela sonoridade que o despertou para a música, Dylan trouxe uma perspectiva subjetiva ao gênero e atualizou o potencial do folk de se comunicar com a modernidade. Segundo Timothy Hampton, professor de literatura comparada na Universidade de Berkley, A Hard Rain’s a-Gonna Fall é a primeira canção folk modernista pois utiliza uma voz tradicional para se posicionar em face ao dilúvio que virá, ideia em consonância com a ebulição das questões de justiça social nos EUA durante os anos 1960. Todavia, permeando a consciência da canção, está a América rural, arcaica, representada pelo uso da linguagem antiga (‘a hard rain’s a-gonna fall’). A coexistência dessas diferentes temporalidades nos reduz ao nosso real tamanho na tapeçaria do tempo - Dylan é um espelho e também um farol.
Ao negar-se a fazer de si o centro temático de sua arte, assumiu esse papel de instrumento de reflexão da condição humana. Desprovido de qualquer messianismo, a constante do artista é a motivação elementar de Dylan (“A performer, if he’s doing what he’s supposed to do, doesn’t feel any emotion at all.”), sendo a ideia de mito um produto da nossa experiência de ouvir uma voz que não conhece o tempo, além de como isso se elabora a partir de nossas vivências.
Bob Dylan se deu tão cedo para mim que, na infância, acharia natural topar com um registro seu no meio do álbum de fotos de família. Conheci suas músicas primeiro pela voz do meu pai, cantando enquanto dirigia ou fazia o almoço, o que resultou numa simbiose a qual sempre mexeu com minha noção de espaço-tempo. Meu pai era uma pessoa fechada, mas ouvir Blood On The Tracks, Desire ou o Freewhillin’ sempre o fazia naturalmente baixar a guarda, e, em alguns minutos de audição, emergiam histórias sobre o passado, sonhos e mágoas que jamais veriam a luz do dia em outros momentos. Nessas irrupções as quais Dylan permitia, percebia o quanto eu e meu pai éramos parecidos e entendia alguma coisa a mais sobre a vida.
A música de Dylan cria um espaço torporoso o qual mistura sonho (passado) e realidade (presente) e o transformou em uma referência cultural vitalícia. Suas canções nos conectam a algo anterior mas também sucessor, fazendo com que sua lírica jogue luz às nossas próprias verdades - ao seguir a bússola de Dylan, revela-se o nosso próprio Norte.