Entre o Místico e o Íntimo: A Sombra de Dylan nos Bootlegs

Hoje em dia são inimigos naturais, como gato e rato, madeira e cupim, cachorro e carteiro. Mas no auge da indústria fonográfica tradicional, as grandes gravadoras e o público dividiam interesses em comum: o interesse das distribuidoras, editoras e gravadoras de subsidiar a demanda colossal de fonogramas inéditos dos seus maiores artistas, enquanto os fãs ansiavam por estar por dentro da intimidade, no âmago, nas decisões do processo criativo do compositor, da banda, dos músicos, da banda… da banda!

Depois de se acidentar de moto em junho de 1966, abre-se, na minha opinião, uma das histórias mais fascinantes, misteriosas e esquisitas da história da música. O mistério por trás do acidente - sobre o qual se sabe muito pouco, ou quase nada -, suas implicações e gravidade, ou até mesmo se realmente aconteceu ou foi forjado, acrescenta muito ao folclore de um dos maiores álbuns de todos os tempos que nunca aconteceu.

É de conhecimento comum o legado deixado à estética do rock pós-psicodélico pela lendária The Band, que acompanhou Dylan por grande parte dos anos 60 e em seu retorno aos palcos e à forma, respectivamente em 1974 e 1973, com Before The Flood e Planet Waves.

As gravações feitas em 1967 no estúdio de Dylan em Woodstock renderam mais de 100 canções inéditas em pouco mais de três meses. Gravações essas que dariam luz ao lendário The Basement Tapes, lançado em 1975 pela Columbia, cru, sem edição, do jeito que tinha sido pirateado através de Bootlegs ao decorrer dos anos.


Algumas das gravações de Woodstock com The Band vieram a constituir o – agora – álbum canônico The Basement Tapes. Elas fizeram parte do que pra muitos é o primeiro Bootleg da história da música. Em 1969, começou a ser vendido e distribuído de forma clandestina a compilação Great White Wonder, um disco anônimo e sem nenhuma identificação clara, a não ser pelo título, escrito em azul anil numa capa branca.

Great White Wonder compila 24 músicas não registradas formalmente por Dylan, gravadas entre 1961 e 1969. Transmissões de apresentações ao vivo de rádios, aparições raras, fitas de outtakes, sobras de estúdio. Tudo misturado em dois discos, lado A e B; um Bootleg duplo. Para quem interessar mais sobre esse bootleg em específico e todas as implicações dos vazamentos das fitas de Woodstock, eu recomendo muito esse artigo da Pitchfork escrito por Eric Harvey.

A versão de Dylan entre 1967 e 1973 é completamente diferente da personalidade acelerada, ácida e altamente controversa que deu as caras entre 1965 e 1966. Dylan casou, teve dois filhos e viveu seu ano mais prolífico enquanto compositor. Porém, suas canções não eram divulgadas oficialmente com sua voz ou participação. Músicas que vazavam através de bootlegs eram regravadas por outros artistas, que assim como o público em geral, também tinham o interesse e a demanda de conhecer o íntimo e o proibido do seu artista favorito.

Million Dollar Bash foi regravada pela Fairport Convention, Nothing Was Delivered pelos Byrds e I Shall Be Released e Momma You’ve Been On My Mind por dezenas de compositores diferentes. Dylan não conseguia fugir das paradas mesmo depois de tanto tempo em reclusão e longe dos holofotes.

Hoje, não se discute mais a importância das Basement Tapes e Bootlegs em geral. O álbum nasceu um clássico, tendo recebido sinal verde para ser lançado quase uma década depois de gravado. E a cultura dos Bootlegs permeia quase toda e qualquer esfera de debate musical: existem fóruns e portais de discussão de outtakes de estúdio em quase todos os gêneros desde os primórdios da internet (Steve Hoffman Music Forum e Beatles Bibble sendo dois importantes espaços de discussão sobre gravações, métodos e pesquisas).

Se existem gravações de estúdio e/ou performances ao vivo, com certeza existem registros e Bootlegs. Em 1991 a Columbia decidiu não só dar um basta na batalha silenciosa contra os registros contrabandeados, mas também dar um grande presente aos aficionados por Dylan. A primeira safra do Bootleg Series consistia em 3 volumes, entregando grande parte do Great White Wonder e outras gravações, singles, ao vivos e outras raridades de 1961 até 1989.

A coleção continua sendo lançada esporadicamente e já contemplou quase todas as fases da carreira multifacetada de Dylan. Já são 17 volumes da série, a última sendo lançada no ano passado contemplando as gravações do ganhador do Grammy de álbum do ano, Time Out of Mind (1997).

A gigantesca ironia disso tudo, ao menos para mim, é: o quão fantástico é que a maior coleção de gravações intimistas, de restos, revelando todos os segredos e a intrincada essência do artista, tenha vindo justamente de alguém notoriamente conhecido por não dar ao público em geral e a quem o rodeia aquilo que eles querem. De alguém que luta a vida inteira com unhas e contra a concordância, demolindo o próprio legado e construindo de novo com outra estética, outro pensamento; sem apego algum com o que se é esperado.

A Bootleg Series vol.15 revela a transformação da voz de Nashville, e a construção do personagem. Assim como as Witmark Demos (Vol.9) mostram em tempo real a construção do personagem de Freewhilin’ e a busca pela voz e personalidade que seria o norte de Robert Allen Zimmerman pelos próximos 5 anos. Another Self-Portrait (Vol.10) mostra que o universalmente odiado disco de 1970 nem sempre foi uma bagunça.

Eu honestamente poderia ficar aqui o dia inteiro citando o que faz de cada um desses discos um artefato importantíssimo e íntimo sobre o artista, tanto para os estudiosos quanto para o público em geral. Longa vida a Bootleg Series, que ao que aparenta, não vai a lugar nenhum; Mais volumes vão ser lançados nos próximos anos, inclusive, eles já existem, estão por aí, nos fóruns, nas fitas, nos discos. Cabe a Columbia - e ao nosso mal-humorado favorito - compilar e botar no forno.

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