UNESPAR | Cinema Pós-Clássico e Cinema Clássico
Texto de Mauro Alejandro Baptista y Vedia Sarubbo, publicado pela UNESPAR em 30 de Junho de 2023. Traçar onde se situa Clint Eastwood nas tradições do cinema estadunidense é uma das tarefas mais interessantes para compreender seu cinema, e este texto aborda a questão por meio de filmes específicos buscando uma elucidação geral.
O texto original (e completo) pode ser conferido aqui.
O termo pós-clássico define um cinema americano contemporâneo, dos anos 1970 até hoje, que retrabalha o paradigma clássico e sua matriz estilística. Entendo cinema clássico como aquele realizado entre 1917 e 1960, dentro dos quais se destaca (mas não é o único) o cinema americano. Utilizo o termo pós-clássico como realizadopor David Bordwell em 2006, no seu livro The Way Hollywood Tells It, também discutidono Brasil, no início do século XXI, no artigo de Fernando Mascarello intitulado Cinema Hollywoodiano Contemporâneo (MASCARELLO, 2006, p. 333). O pós-clássico não repete o estilo clássico, isso seria considerado um pastiche e não uma paródia sem humor e uma repetição sem diferença (HUTCHEON, 1989), e teria problemas para se sustentar perante a indústria, o público e a crítica.
Acredito que Clint Eastwood, como cineasta, efetua uma importante conexão entre o cinema contemporâneo e o cinema clássico de Hollywood. Há, porém, mudanças estilísticas entre o cinema de Eastwood e o cinema de John Ford, Howard Hawks ou William Wyler, para citar três diretores essenciais do cinema clássico americano; mudanças de estilo nas matérias de expressão que pertencem ao meio cinema, como montagem, fotografia, trilha sonora e trabalho dos atores. Os filmes de Clint Eastwood incorporam, de maneira muito sutil, quase subterrânea, traços estilísticos do cinema de arte e do cinema moderno, basta pensar em filmes como Rio Místico (Mystic River, 2003) ou Meia noite no jardim do bem e do mal (Midnight in the Garden of Good and Evil, 1997), nas cenas de abertura desses filmes; na dramaturgia coral do primeiro; no roteiro que se pretende clássico do segundo longa-metragem, mas que, ao mesmo tempo, está aberto a longas performances da personagem e da atriz trans, Lady Chablis, onde o filme e o diretor/autor parecem esquecer de contar a história principal para literalmente parar e se deleitar com a atriz que interpreta a si mesma.
Como estou lidando com um cineasta com mais de sessenta anos de trajetória, acredito necessário fazer uma breve introdução ao autor Clint Eastwood, que abarca as funções de ator, diretor, produtor e também, desde os anos 1990, compositor.
Introdução ao diretor e ator clint eastwood e seu status na crítica nos anos 1970 e 1980
O ator, cineasta e produtor Clint Eastwood, nascido em 1930 na cidade de San Francisco, estado da Califórnia, Estados Unidos da América, tem sido ator desde 1955, produtor desde 1968, diretor desde 1971, e compositor de trilhas desde 1992. Seu trabalho constante durante décadas dentro da estrutura de indústria hollywoodiana, com todas as vantagens de produção e distribuição de seus filmes, e desvantagens no sentido de limitações, pressões e constrangimentos que toda indústria impõe a um artista, tem lhe valido, desde a metade dos anos 1980, o reconhecimento da crítica, com destaque para a francesa, como diretor e como “autor”. Entendo autor no sentido específico que os jovens críticos da Cahiers du Cinéma dos anos 1950, entre eles Jean-Luc Godard, François Truffaut, Eric Rohmer e Jacques Rivette, deram ao termo para definir aqueles cineastas que trabalhavam na indústria hollywoodiana e que, apesar dos condicionamentos próprios da indústria, conseguiram realizar uma série de filmes que constituíram uma obra autoral.
A política de autores como foi formulada nos Cahiers du Cinéma foi pensada para estudar e valorizar autores que, via de regra, faziam cinema de gênero e não cinema de arte. Autores que eram subestimados pela crítica tradicional da época como cineastas “comerciais” ou apenas artesãos do ofício da direção. Liderados por André Bazin, estes críticos definiram a politique des auteurs privilegiando o filme de gênero e o estilo, com ênfase para a mise en scène, como alternativa para a crítica mais tradicional que valorizava os grandes temas e significados. Nos Estados Unidos, Andrew Sarris reformulou esta política de autores, denominando-a teoria de autor (SARRIS, 1962-63), radicalizando seus princípios e tirando grande parte da ambiguidade. Na Inglaterra, a influência da política de autores se expressou principalmente na revista Movie, em artigos de críticos como Ian Cameron, V. F. Perkins e Robin Wood (CAUGHIE, 1981, p. 48-60). A crítica auterista atacou aqueles filmes qualificados de filmes de arte pela importância dos temas que escolhiam tratar e a abordagem estilística acadêmica (o chamado “cinema de qualidade”). Em contrapartida, a crítica auterista colocou como grandes autores especialistas em cinema de gênero pouco reconhecidos pela crítica da época, como Howard Hawks, Alfred Hitchcock e Raoul Walsh, Samuel Fuller e Anthony Mann. Por outro lado, a política de autores rebaixou o prestígio de diretores considerados grandes artistas pela crítica tradicional, como William Wyler e Billy Wilder. A política de autores, como formulada originalmente, possui aspectos que são fundamentais para entender o cinema de Eastwood: o repúdio da distinção entre arte e entretenimento, entre alta cultura e cultura de massas; a crítica, portanto, ao cinema “de qualidade”, que se autoproclama de arte pela nobreza do tema; a preocupação com o estilo e com a mise en scène, ou seja, com as formas, consideradas essenciais para definir um autor; e a avaliação positiva dos cineastas que trabalham com filmes de gênero, como western, policial, musical. Do último ponto, surge a posterior releitura dos gêneros hollywoodianos que viriam a fazer, na nouvelle vague ,Jean-Luc Godard e François Truffaut, entre outros. O primeiro aspecto mencionado inclui a rejeição de todo tipo de cânones no cinema, bem como de preconceitos contra os filmes de gênero e de massas: apenas a análise de cada filme nos dirá se ele tem valor ou não. Isso implica abolir a oposição, forte no pensamento ocidental do século XX, entre alta e baixa cultura, entre a Grande Cultura, com maiúscula, e as culturas de massas; implica pensar a cultura como algo dinâmico, com uma permanente interação entre suas diversas manifestações. No que tange ao estilo, é uma preocupação central deste trabalho: a mise en scène, a decupagem e a interpretação, o trabalho do ator.
Se nos primeiros 15 anos de carreira, Clint Eastwood foi criticado e/ou quase desprezado pela crítica; há pelo menos três décadas é que possui um grande prestígio. O status de Eastwood perante a crítica começou a mudar nos anos 1980. Tim Cahill, em artigo na revista Rolling Stone (1985), lembra como o escritor e jornalista Norman Mailer afirmou, em 1983, em um artigo na revista Parade, “Talvez não haja ninguém mais americano do que ele... Eastwood é um artista.”(CAHILL, 1985, s.p.). Cahill também sublinhava como o jornal Los Angeles Times tinha escrito que as mulheres nos filmes de Eastwood sempre foram fortes e interessantes, e que “Eastwood pode não ser apenas um dos melhores, mas o mais importante e influente (devido ao tamanho de sua audiência) cineasta feminista que trabalha hoje na América” (CAHILL, 1985, p.16). Na mesma década de 1980, a New York Times Magazine publicou uma matéria de capa sobre Eastwood, intitulada Clint Eastwood, seriously (VINICOUR, 1985). No mesmo ano, seu longa-metragem O cavaleiro solitário (Pale Rider, 1985), um western, foi selecionado para a competição oficial do festival de Cannes, um dos fatos que marcam sua mudança de status perante a crítica.
Durante os anos 1960 e 1970, Eastwood foi subestimado ou massacrado pela crítica especializada: primeiro como ator, quando era a estrela dos westerns de Sérgio Leone; depois, nos anos 1970, como ator e como diretor, fundamentalmente no seu país, Estados Unidos. Em 1978, Richard Schickel fez uma matéria de capa para a revista Time, onde colocava lado a lado Burt Reynolds e Clint Eastwood (tinham feito um filme juntos), com o título Hollywood’s Honchos (os chefões de Hollywood) (SCHICKEL, 1978). Segundo Schickel, seu biógrafo, Eastwood não gostou; não era o que esperava alguém que queria ser respeitado como diretor (SCHICKEL, 1996).
Grande parte da incompreensão em relação a Eastwood como diretor e como ator se fundamenta na combinação de estrela e de artista, mais a junção de ator de apelo massivo e de diretor de talento artístico. Algumas decisões do próprio Eastwood, onde pesaram mais o lado produtor e, portanto, o fator financeiro, não ajudaram a se colocar como um cineasta artista. A série de filmes do detetive de polícia Harry Calahan (apelido Dirty Harry, Harry o sujo), por exemplo, formada por cinco filmes que atravessam as décadas de 1970 e de 1980, é um bom exemplo; a série prejudicou a recepção crítica do cineasta auteur. Se Eastwood fosse apenas diretor e produtor, essa incompreensão não seria mais do antigo pré-conceito que existe com o cinema industrial deHollywood, algo que já teria acontecido com Alfred Hitchcock ou Howard Hawks, considerados durante muitos anos apenas bons artesãos, diretores “comerciais”, até serem resgatados pelos jovens críticos da Cahiers du Cinéma. Mas Eastwood era também ator, era também estrela e era um ator estrela com um tipo físico bem característico (alto, forte, musculoso) ainda por cima identificado por sua predileção pelo Partido Republicano. Ele era um ator que consagrou o policial Dirty Harry, precursor dos filmes de policiais e/ou justiceiros, numa época marcada, nos Estados Unidos, pela desilusão com a Guerra de Vietnã, pelo escândalo de Watergate, por uma ampliação dos direitos da cidadania e dos direitos humanos; na América Latina, pelo auge dos golpes (Uruguai e Chile em 1973, Argentina em 1976) e das ditaduras militares com amplo suporte do Departamento de Estado dos Estados Unidos. A série de filmes estrelados por Charles Bronson (chamados Death Wish) é um bom exemplo de uma série de filmes de justiceiros, em narrativas de vinganças contra marginais e bandidos que, não em vão, eram retratados como herdeiros da contracultura e do movimento hippie.
Nos anos 1980, a recepção ao cineasta Clint Eastwood começa a mudar. A França joga um papel fundamental: a partir dos filmes Bronco Billy (1980) e A última canção (Honkytonk Man, 1982), parte da crítica francesa já o considera um autor. Em 1990, Noel Simsolo dedica um livro a ele, publicado pela editora da Cahiers du Cinéma, com uma capa azul clara e uma foto da personagem de Harry o Sujo. Como já foi assinalado, seu longa-metragem Cavaleiro Solitário (Pale Rider) é selecionado para o Festival de Cannes em 1985 e, posteriormente, outro filme dele, Bird, este sim explicitamente um filme de arte e não de gênero, ganha a Palma de Ouro de Melhor Ator com Forest Whitaker em 1988. Depois da consagração de filmes como Os Imperdoáveis (Unforgiven, 1992), com seus quatro Oscars, com destaque para Melhor Direção e Melhor Filme, As pontes de Madison (The Bridges of Madison County, 1995) e Menina de ouro (Million Dollar Baby, 2004), Eastwood passa a ser, para a imprensa e a crítica do mundo inteiro, um “ícone americano”, um “mestre”; o “cineasta americano” por excelência.
A oscilação entre uma rejeição em bloque e um elogio exagerado dificultam o entendimento de sua obra. É importante lembrar que como ator Clint Eastwood também tem um sucesso tardio, fora de Hollywood. Temos que lembrar também que ele estreia como diretor somente aos 41 anos, numa época onde a nova leva de diretores estrela dos cinemas dos anos 1960 e 1970 (Bertolucci, Coppola, Polanski, Glauber Rocha, Scorsese) chega a dirigir seu primeiro longa-metragem aos vinte e poucos anos, trinta anos de idade. Eastwood chega a ser uma estrela por vias não convencionais: um western realizado por um diretor italiano, Sergio Leone, filmado na Espanha com um orçamento baixo, cujo roteiro plagiava partes de Yojimbo, o guarda costas (Yojimbo, Akira Kurosawa, 1963). Na segunda metade dos anos 1950 e nos primeiros anos dos 1960, Eastwood tinha feito um seriado western chamado Rawhide, que lhe deu estabilidade financeira e, segundo ele mesmo conta (SCHICKEL, 1996), a chance de praticar e aperfeiçoar, durante anos, a construção de uma personagem e sua relação com o público. Terminado o seriado, sem ofertas interessantes em Hollywood, Eastwood faz um western na Europa com Leone, então diretor desconhecido, que tinha dirigido apenas um longa-metragem. Com Leone, Eastwood faz a famosa trilogia do dólar (Por um punhado de dólares, A Fistful of Dollars, 1964; Por um punhado de dólares a mais, For a Few Dollars More, 1965; e Três homens em conflito, The Good, the Bad and the Ugly, 1966), que obtém fama mundial e inaugura o auge do chamado spaguetti western. Após o extraordinário sucesso dos três filmes, que transformam Eastwood em uma estrela, Leone oferece um papel a Eastwood em Era uma vez no Oeste (Once Upon a Time in The West, 1968), mas o ator e futuro diretor recusa desta vez a oferta (Charles Bronson assumiria em seu lugar). De volta a Los Angeles, em 1967, Eastwood abre sua produtora Malpaso para produzir os filmes em que iria atuar; e, a partir de 1971, aqueles que iria dirigir.
O estilo de interpretação de eastwood
Se a aparência física, o porte avantajado (1,93 metros) e, fundamentalmente, uma forma de atuar contida, estilizada e com um toque de ironia, consagraram Eastwood perante o público, estes mesmos aspectos, somados ao enorme sucesso de bilheteria de seus filmes, o prejudicaram perante a crítica. Vou descrever aqui o que entendo, por uma interpretação minimalista, contida, estilizada e com um toque de ironia e vou desenvolver esses conceitos, realizando uma conexão com a teoria da interpretação. Eastwood como ator, consciente de seu tamanho e seu porte, apresenta uma forma de atuar eminentemente cinematográfica, que se baseia mais na presença física, no estar em cena de forma calma, e num gestual de face e de corpo marcante, dar menos importância às falas “bem faladas”. Esse estilo de interpretação é algo que, arriscamos uma hipótese, aproxima-se do que o russo Michael Chekhov definiu como o gesto psicológico. Para Chekhov, o gesto psicológico é um gesto arquetípico, simples, que resume a psicologia de uma personagem de forma essencial (CHEKHOV, 2015, p. 75-90). Por interpretação contida, refiro-me também a estar na cena e no quadro e expressar o menos possível, fazer a menor quantidade de movimentos e gestos possíveis, ancorando-se sim no gesto psicológico, que captura a essência da personagem. Nesse sentido, Eastwood como ator prefere reagir a agir, prefere escutar a falar, prefere ocultar grande parte do que sua personagem sente, no lugar de expressar isso. Sobre a estilização, e que chamei de toque de ironia, acredito que Eastwood tem consciência que, ele chegando nos anos de 1960, não fazia sentido replicar um estilo lacônico e econômico de atores dos anos 1930, 1940 e 1950, e por isso, agrega um certo distanciamento crítico, uma ironia, uma estilização a essa performance de ator que eu definiria como pós-clássica, justamente por evocar e aludir, a forma clássica de atuar, mas por não a replicar.
Seu estilo como ator, sua suposta falta de expressividade, seu apego a um estilo de economia de gestos, relacionam Clint Eastwood e sua forma de atuar com um tipo de atores do cinema clássico hollywoodiano, como Gary Cooper, Robert Mitchum ou John Wayne. Vale ressaltar que Eastwood ficou reconhecido numa época (1955 até 1968) totalmente dominada por atores que vinham da influência de Stanislavski e seus discípulos nos Estados Unidos, o Actor’s Studio de Lee Strasberge de outras linhas que também seguiam o Sistema de Constantin Stanislavski (como Sanford Meisner, Stela Adler, Harold Clurman); escola de interpretação dominante também na geração posterior (Robert de De Niro, Faye Dunaway, Al Pacino, Dustin Hoffman) dos anos 1970. Brando, discípulo de Meisner e que frequentou o Actor’s Studio, é o ator por excelência citado como exemplo da validez das ideias de Stanislavski e do método. Joanne Woodward, James Dean e Paul Newman são outros exemplos de atores que viraram estrelas e popularizaram tanto Stanislavski quanto Lee Strasberg.
A crítica Pauline Kael, da revista New Yorker, costumava afirmar que Eastwood era um não ator. Grande parte dessa aversão foi provocada pelo sucesso de público do filme Perseguidor implacável (Dirty Harry, Don Siegel,1971) e por uma identificação entre o conteúdo ideológico do filme e a persona e o ator Clint Eastwood. O artigo de Kael, Dirty Harry: Saint Cop, publicado na New Yorker em janeiro de 1972, coteja os pressupostos do roteiro do filme com dados e com a realidade da cidade de São Francisco da época para concluir que o filme defende a morte dos criminosos e a justiça pelas próprias mãos (KAEL, 1972). “Como o crime é causado por privações, miséria, psicopatologia e injustiça social, Dirty Harry é um filme profundamente imoral”, escreveu Kael (1972, p. 78). As críticas de Kael fizeram efeito, visto que o personagem Harry Calahan, no segundo filme da série, Magnum 44, enfrenta um grupo de policiais que formam um esquadrão da morte (há inclusive uma referência ao Brasil da ditadura militar dos anos 1970). É importante salientar que Perseguidor Implacável foi dirigido por Don Siegel (não por Eastwood, que o produziu e o protagonizou), na época já um diretor acostumado a dirigir desde os anos 1950 e que apenas nos anos 1970 contou com orçamentos de grande porte.
Eastwood como ator e diretor em josey wales, o fora da lei
Vou agora analisar outra cena de abertura e de créditos de Clint Eastwood, indo também da análise de Eastwood como diretor pós-clássico a ator do gesto, das ações físicas, do gestual, na linha de Michael Chekhov. Josey Wales, o fora da lei (The outlaw Josey Wales, 1976) começa com o letreiro da Warner Brothers. O primeiro plano mostra, em Plano Geral, um amanhecer e a figura de um homem, seu filho e uma mula, arando um pequeno trecho de terra; percebemos o pequeno tamanho da propriedade porque ela está rodeada de muros de árvores. O som da voz do camponês se mistura ao barulho do animal e do arado que trabalha a terra. O filme corta para um Plano Médio onde vemos uma criança pequena, um menino de uns cinco anos, que pega as pedras que estão na terra antes do caminho do animal, tentando aliviar o trabalho do pai. Tarefa mais simbólica que efetivamente real, mas que mostra a relação simbiótica entre pai e filho. Em seguida, o pai chama o filho para o ajudar com o arado, preso na terra. Ouvimos a voz de uma mulher, mãe da criança, nos 00:56 segundos de filme. Corte, e vemos, em Plano Geral, longe, a silhueta de uma mulher, que chama seu filho (“little Josey”), para ele parar de trabalhar e se assear. O filho olha para o pai, em Plano Médio, reconhecemos o ator Clint Eastwood, e o camponês lhe faz sinal para ele obedecer a mãe. Corte para um Plano Inteiro (01:02 segundos) onde o camponês continua trabalhando a terra com a mula e o arado; a mudança de luz nos mostra que houve uma passagem de tempo. Ouvimos um ruído forte e ameaçador de cavalos a galope. Primeiro Plano do personagem do camponês que mostra sua apreensão. O camponês olha para cima. Eastwood compõe sua personagem apenas com a presença física e com uma interpretação contida e um gesto de esforço físico continuado, na inclinação do corpo com o arado.
Corte: as árvores e o céu: não há pássaros, sinal de alarme. Corte para Plano Médio: a barriga, as patas dos cavalos que passam e o grito de guerra dos cavaleiros. A imagem detalhe mostra que são vários os cavalose,logicamente, os cavaleiros. Corte: face do camponês, que se alarma e deixa de trabalhar. Plano Médio mostra a personagem do labrador que corre em direção ao seu lar. Entra trilha sonora, sinalizando perigo. Vemos a personagem interpretada por Eastwood que corre entre uma mata cheia, com alguns clarões. A cena é pouco iluminada; há várias zonas dos planos na escuridão. Três planos apenas mostram o camponês correndo numa mata escura, enfatizando o perigo. A trilha fica mais marcada e enfatiza ainda mais operigo. Ouvimos um disparo. O camponês,em Plano Geral,corre até a câmera, há mais um disparo; o camponês para de correr num Plano Médio, olha no fora de campo. Os disparos do filme têm um tom grave, forte, bem longe do som agudo, paródico e estilizado dos disparos dos westerns de Leone. Contra plano. Vemos o que a personagem vê (01:59): uma casa tomada pelas chamas e alguns cavaleiros que rodeiamolugar, executando a destruição do lar. Não vemos as faces de quem cavalga e ataca. Close, plano em chiaroescuro, do líder dos saqueadores, com o som das vozes do menino e sua mãe que chamam o camponês: Josey. Trata-se da primeira vez que ouvimos o nome do protagonista. No minuto 02:01, há o segundo disparo e o camponês corre. Em 3 minutos, o terceiro disparo, sobre um Plano Geral da casa de Walesem chamas. Vemos os invasores. O filho e a esposa são pegos por eles e pedem ajuda (“Josey”). Josey corre. Um cavaleiro bate nele e ele cai no chão. Caídono chão, o camponês Josey ouve o filho de novo. Corte para as chamas. Percebemos que a casa está em chamas. Josey se levanta com dificuldade. Corte para o chefe dos saqueadores (o espectador consegue discernir o rosto) que bate Josey na cara com uma espada. Josey cai no chão e ouve a voz do filho, no minuto 02:46 segundos: um corte na altura do olho lhe provoca um grande sangramento.De novo, um gestual forte, uma expressão corporal, visceral, define a personagem, sem necessidade de palavras, enfatizando a ligação com o pensamento de Chekhov.
Imagens do fogo, sons de disparos e gritos, a casa cai no chão, derrubada pelas chamas, no minuto 03:00. É uma série de planos entre os quais há vários plongée e contra-plongée, acentuando o dramatismo, uma fotografia com pouca luz, planos que não deixam ver toda a cena. É clara a intenção do filme em nos aproximar de uma perspectiva próxima àdo personagem camponês Josey Wales. Toda a sequência é narrada de um ponto de vista narrativo próximo a esta personagem protagonista do filme.
Em 03:09, vemos um plano da mata, o ruído de uma pá que cava na terra; corte para Josey enterrando o filho, num plano plongéebem pronunciado. Em 03:27, há um Plano Médio de um corpo dentro de um saco, sendo arrastrado pela terra; no final do plano, vemos uma mão bem pequena, deuma criança, que sai do saco. Trata-se do filho de Josey. Plano Médio das pernas de Josey enquanto arrasta o corpo. Segue toda uma sequência onde com maestria, Eastwood compõe o personagem de Josey Wales apenas com ações físicas e gestos.
Num Plano Médio e plongée, Josey coloca, com dificuldade física, a cruz no chão. O espectador percebe que é uma tarefa física difícil de ser executada por um homem, com instrumentos rústicos, assim como era arar a terra. No mesmo plano, sem cortes, Josey se ajoelha (Plano Médio) e abraça a cruz, seu rosto expressa dor e cansaço. A personagem diz “do pó ao pó, da terra aterra, o senhor dá, o senhor tira”, referindo-se a Deus. Há raiva e impotência na face da personagem; ele chora e a cruz cai inclinada no chão, Josey continua, apoiado na cruz de madeira, chorando. É o ápice do gesto psicológico que resume a personagem do antigo Josey, que já não vai ser mais camponês, e é nesse instante apenas um homem dilacerado pela dor e pela perda, alguém que morreu em vida, alguém consumido pela dor e que deixa transparecer a raiva que cresce e se anuncia.
Entre 04:41 e 05:04, vemos a mão de Josey que desenterra um velho revólver, entre a terra e as cinzas da casa. A mão desenterra a arma, a câmera acompanha a mão e o braço, vemos Josey Wales olhando para a arma. Em 05:05, uma madeira, em cruz, que parecem ser de uma antiga cerca da pequena propriedade rural, recebem os tiros do revólver de Josey. Um detalhe mostra a maestria do estilo do filme. Primeiro, o espectador ouve um,dois disparos e não enxerga nenhuma mudança na imagem, nada acontece na madeira. Com o terceiro disparo, vemos o impacto na madeira e um pequeno pedaço de madeira cai no chão. Segue uma sequência de planos de Josey atirando na cruz de madeira, onde se destaca um plano da mula, sozinha, sem fazer nada, no campo onde a personagem arava a terra. O recado é claro: ele já não semeia a terra, agora ele só atira, com raiva contida, pensando em vingança. O camponês Josey morreu, agora virá o vingador Josey, deduz o espectador.
No minuto 05:42, um plano geral revela Josey Wales, com o chapéu de camponês, sentado no chão, abatido, rodeado da paisagem da natureza do lugar que era seu lar. Há pouca luz no plano, característica do autor Eastwood, vemos apenas a silhueta da personagem. De novo, Eastwood compõe sua personagem com um gesto psicológico.
Um contra plano revela que ele está sentado ao lado do túmulo familiar. Um terceiro plano mostra mais de perto a personagem e,atrás,umas bandeiras, cavalos e cavaleiros. Chama a atenção a falta de reação de Josey Wales, que mal se mexe (triste, abatido, pouco se importa pela sua segurança pessoal). Ele só gira a cabeça, com uma expressão muito contida, quando os visitantes explicitam sua presença pelo relinchar dos cavalos (até o minuto 6:00) e durante alguns momentos, os visitantes ficam em total silêncio, mostrando solidariedade à dor de Josey, sentado ao lado de um túmulo. O líder se apresenta (“Meu nome é Anderson”) e pergunta se foram “artilheiros”, a tradução que há no filme da expressão “Red Legs”, um grupo paramilitar que lutava do lado do exército da União (Norte), especialmente no estado de Kansas. O líder Anderson diz a Josey que os encontrará no estado de Kansas, que estão com a União, e que eles irão até lá para “consertar as coisas”, num tom que implica vingança. Num Plano Médio, Josey, sem uma expressão definida, ainda processando a nova informação, diz “Eu irei com vocês”. Essa frase lacônica é continuação do gesto abatido de Losey sentado na frente da cruz, no túmulo familiar.
Entra um Plano Geral com tom azulado e música com tambores militares, vemos as silhuetas dos cavaleiros que cavalgam na direção da câmera e o nome impresso na tela: “Clint Eastwood”, depois “The Outlaw Josey Wales”, segue o nome do ator indígena “Chief Dan George” e depois “Sondra Locke”, nome da atriz e do ator Bil Mckiney. Segue uma sequência de três minutos e dez segundos onde é narrada a história do grupo de civis onde se soma Josey Wales no contexto da guerra civil americana. O espectador vê nessa sequência de montagem cenas da guerra, cenas do grupo de Josey na sua caçada dos paramilitares (“pernas vermelhas”), a derrota paulatina dos confederados para a União e a morte do líder Anderson, aquele que havia convidado Josey Wales a se somar na vingança contra os paramilitares.
Segue uma cena que exemplifica o estilo seco e minimalista de Eastwood como diretor (economia de posições de câmera, poucos cortes, poucos procedimentos que evidenciam o discurso cinematográfico) e sua ligação com sua forma de atuare com o gesto psicológico de Chekhov. A música termina. O grupo de rebeldes está acampado. Fim do dia. A sequência é pouco iluminada e o tom da imagem é um azul cinza. O agora líder do grupo, Fletcher, interpretado por John Vernon, comunica ao grupo que tudo o que eles têm que fazer é ir até um acampamento próximo da União, jurar lealdade aos Estados Unidos, pegar seus cavalos e voltarem à casa. Um dos rebeldes pergunta se eles receberão totalanistia. “Sim”, é a resposta. Lentamente, todos pegam seus cavalos e se dirigem ao acampamento do exército dos Estados Unidos. Um jovem hesitante olha para Josey Wales e apenas pergunta a ele “Josey?”.“É melhor você ir com eles”, é a lacônica resposta de Wales. O jovem vai. Wales fica sentado, inclinado, pensativo, de forma que evoca como estava sentado na frente dotúmulo familiar. Fletcher desce de seu cavalo e pergunta a Wales se ele irá com eles. Wales diz que acredita que não. Fletcher avisa que irãoatrás dele. Josey assente “Sim”. “Não há onde ir”, ressalta Fletcher. “Reconheço, é verdade”, responde Wales. “Boa sorte, Josey”, se despede Fletcher.
A cena é interpretada por Eastwood com um gestual mínimo, com sua silhueta e rosto pouco iluminado, com uma personagem sentada sem praticar movimentos que não os mínimos com a cabeça e o olhar, sem demostrar emoção aparente. Esse estilo minimalista, seco, que vai na essência da personagem, que se baseia num gesto psicológico e numa ação física determinada, que é econômico no seu gestual e ao mesmo tempo forte, contido na comunicação das emoções, relaciona-se com o estilo cinematográfico pós-clássico da cena e é uma marca da herança da escola de Michael Chekhov no estilo de atuar de Eastwood.
De novo, aqui, a principal virtude de Eastwood nesta cena de abertura é o talento para estar na tela, para quase não reagir, para comparecer na tela com um gestual forte e com a presença física, no entendimento de que a interpretação cinematográfica forma parte de um todo onde a decupagem e a montagem desempenham papéis fundamentais, e assim, ter uma economia de gestos de acordoa seu estilo cinematográfico pós-clássico.
A construção do personagem em cada cena passa, em Eastwood, pela construção de um gesto fundador, de umgesto que define e sintetiza a personagem. Josey Wales pendurado na cruz, chorando copiosamente, quando enterra sua família; Wales sentado no chão, olhando para baixo, pensativo, enquanto seus colegas escolhem se render para o exército do Norte. O Eastwood diretor pós-clássico e o Eastwood ator herdeiro da escola de Michael Chekhov apresentam uma unidade estilística evidente.
Considerações finais
Este artigo mapeou as origens do ator e diretor Eastwood: seu começo de carreira, a recepção da crítica nas primeiras décadas e como se inter-relacionam o estilo do ator com o do diretor. O ator Eastwood, consciente de suas limitações e de seus pontos fortes, inaugurou uma forma de interpretar muito pessoal, seca e minimalista, ligada a um estilo clássico de atuação, coerente com seu estilo como diretor. Há coerência entre o estilo de Clint Eastwood de interpretar e seu estilo como diretor. Como ator, filia-se a uma escola que privilegia as ações físicas, o gestual, o estar presente e a imaginação na criação do personagem, rejeitando os conceitos de memória emocional, as racionalizações e as abordagens próximas à psicanálise do Método de Lee Strasberg. Nesse sentido, a filiação de Eastwood com o pensamento do ator e mestre russo Michael Chekhov surge nítida na sua composição e abordagens dos personagens. Ao mesmo tempo, Eastwood como ator também apresenta uma ligação com uma escola de atuação ligada àera clássica de Hollywood, representada por Gary Cooper, John Wayne, Henry Fonda, James Cagney, Humphrey Bogart, entre outros. Nesse sentido, sua ligação com Cooper, ator impassível, é algo a ser explorado em futuros artigos.
Já o diretor Eastwood retoma a tradição do cinema clássico, de um John Ford, Hawks e Wyler, com um viés autoral; não adota a reflexividade nem a exposição do dispositivo, características do cinema moderno e do cinema pós-moderno, filiando-se, portanto, a uma corrente de cinema contemporâneo autoral que denomino pós-clássica. Nesse sentido, Eastwood é um caso raro se comparado com a imensa maioria de cineastas americanos surgidos a fins dos anos 1960 e 1970,e que são aqueles que construíram uma obra realmente importante com a chamada Nova Hollywood, como Scorsese, De Palma, Coppola, Altman. A originalidade e singularidade artística do Eastwood, ator e diretor, funda-se justamente no seu enraizamento com o clássico, que no cinema americano contemporâneo hoje é retomado por exemplo por grandes diretores como John Gray ou pelo estilo muito próximo do estilo pós-clássico de séries como Sucession (HBO), Ozark (Netflix), Santa Evita (Star Plus), Bom dia, Verónica (Netflix) ou Yellowstone (Paramount Plus).