Artigo | As Pontes de Madison: O Último Grande Romance?

Em obra prima


Robert Kincaid procura, com sua câmera, a melhor maneira de olhar para Francesca. Ela se esconde, se retrai, à procura de um lugar seguro onde possa observar, sem ser observada, justamente aquele que a observa. O que Robert vê é uma mulher presa na vida de outra, um palimpsesto, reescrito ao longo de toda uma vida de modo a preterir os desejos, sonhos e pensamentos de alguém refém do lugar onde nasceu, cresceu e agora reside: sua casa é toda sua vida, mas também sua prisão. Para quem for ler a revista da National Geographic, as Pontes de Madison são apenas aquilo que Robert fotografar: o rio abaixo, o pasto ao redor, até mesmo o céu acima. Para Francesca, são uma possibilidade simbólica de outra vida, de descobrir quem se é por baixo de quem se tornou.

Robert é, nesse sentido, tanto um fotógrafo como um arqueólogo. Alguém que não apenas capta imagens mas, ao registrá-las, traz à tona seus enigmas, permitindo que estas próprias se percebam e se questionem - uma mímese com a própria estrutura do filme, visto como um flashback literário, após os filhos encontrarem nas relíquias deixadas pela mãe cartas que contam dos dias que passou com Robert. E a reconstituição do passado, tema tão caro a ele em tantos outros filmes, é traduzido para a tela com a delicadeza e a atenção a detalhes que tornam uma mão na maçaneta um plano de peso monumental: um pequeno gesto perdido na infinidade de uma ida ao centro da cidade, toda uma porta que se fecha, uma ponte que cai, na extenuante duração de um instante.

Um traço comum de grandes cineastas, mas que na maior parte do tempo existe sob a epiderme de seus filmes, é o fazer cinemas dentro de um único filme. É com sequências, ou cenas, ou mesmo planos, se apropriar de gêneros e narrativas e estilos, regidos sob suas próprias regras e subalternos aos seus respectivos estilos. Na rede de planos envolvendo o momento final entre Robert e Francesca, vemos Eastwood encharcado pela chuva, com seus cabelos grisalhos caídos sobre sua testa. A coloração cinzenta, o nervosismo eclodindo em cada poro de Meryl Streep, o posicionamento de Eastwood, parado como um espantalho: um filme de terror, onde duas pessoas morrem, e o que sobram são fantasmas.

Neste filme de dispositivos - fotógrafo que tira fotos da mulher por quem se apaixona; pretendentes que tentam esconder sua paixão pelo outro por meio do olhar; filhos que leem as memórias da mãe; -, de certo modo externo à toda sua carreira por como condensa o filme em um jogo de fluência dos corpos (e não dialética, como é a norma), podemos ver uma amostra mais pura de seu estilo como cineasta. Há uma curiosidade no olhar, um traço de romantismo, por vezes perdido na praticidade da mise-en-scène de um ator tornado diretor, que define como devem ser seus filmes conforme eles acontecem.

Há um interesse do artista de capturar, reinterpretar, mudar o mundo por meio de sua arte, como sua sequência de filmes dos anos 90 coloca em evidência. Por outro lado, há a ciência do ator de que o mundo perfeito do cinema é feito de coisas menos mágicas, que as coisas começam antes da ação, e continuam depois do corta.

Onde rege, portanto, a marca autoral? Eastwood não é, de forma alguma, um diretor que banaliza a imagem e a importância de sua concepção, mas há nele uma vontade de resolver as coisas de maneira rápida, de evitar ruído, de evitar uma corrupção do material em mãos. Longe de ser um realista, ou documentarista, ou mesmo um etnógrafo, seus filmes ainda preservam a identidade do cinema hollywoodiano, ainda se calcam em uma genealogia que reconhecidamente precede sua carreira, resultando em uma filmografia curiosa, de um homem moldado pelo cinema tanto como imaginário como indústria.

Quando escolhe adaptar um romance, ou um desromance, Eastwood sabe do que veio antes. Do Desencanto (1945), do Tarde Demais Pra Esquecer (1957). Curioso, portanto, que As Pontes de Madison seja, embora um filme consciente de seu passado, um dos últimos romances verdadeiros de Hollywood, antes de esta entrar na época do pós, onde os filmes mais dialogam sobre o amor do que se permitem senti-lo - de certo modo, o flashback é o filme de romance até os anos 90, enquanto a conversa dos irmãos, e seus respectivos relacionamentos, é uma amostra das crises matrimoniais e relacionais de uma nova geração.

Me pergunto se Clint assistiu Spring In A Small Town (1948), filme sobre um amor impossível que ocorre em uma casa isolada em meio a ruínas. Não existem ruínas em Madison, mas o que são pontes?

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