Suze Rotolo e a Gênese de um Ícone Cultural
Antes de qualquer Criação, há alguém que nos olha com a mesma intensidade com que olhamos o mundo.
“That still remains one of the most popular pictures and a lot of people want it. A lot of people write the story, what that picture means to them. They say, yes, it brings back part of their youth. Even young people today, they look back, it says to them: here are these young people walking… in the middle of a harsh environment. It has become a kind of symbol of youth starting off in a harsh environment, but with hope for the future.”
“Essa continua sendo uma das fotos mais populares e muita gente a quer. Muitas pessoas escrevem a história, o que essa foto significa para elas. Elas dizem que sim, ela traz de volta um pouco da juventude delas. Mesmo os jovens de hoje, ao olharem para trás, a imagem lhes diz: aqui estão esses jovens caminhando... em meio a um ambiente hostil. Tornou-se uma espécie de símbolo da juventude que começa em um ambiente hostil, mas com esperança no futuro.”
Esse texto em específico não vai ser essencialmente sobre Bob Dylan e seu primeiro sucesso comercial. Tampouco pretendo reduzir a mulher que foi sua principal fonte de inspiração durante seus quatro primeiros anos de carreira e depois o deixou. Ela mesma, em seu livro, “A Freewheelin’ Time”, alude ao fato de que não era apenas mais uma corda na guitarra de Dylan ou uma ponte até ele (pág. 192).
Ao invés disso, pretendo usar a relação dos dois como uma espécie de dogma sobre a curiosidade humana, impulsionada e retroalimentada por outro alguém, como principal alicerce para existir – e, consequentemente, para criar.
O percalço é não me limitar apenas à questão criativa – mesmo que ela seja, inevitavelmente, a mais importante –, mas de fato buscar uma visão mais panorâmica dentro desse escopo de observação ativa em busca de respostas (Freewheelin’ é um álbum basicamente de perguntas retóricas). Quero chegar ao final desse texto com a plena convicção de que se existe para criar ao mesmo tempo que se cria para existir. Que a conversa compõe a música e a música compõe a conversa. E que tudo isso nasce através de relações interpessoais.
Robert Zimmerman (ou Bob Dylan, como melhor conhecemos), em seus memoriais, posteriormente compilados no livro Chronicles, tem uma passagem que conecta diretamente o processo criativo com essa visão: “Creativity has much to do with experience, observation and imagination, and if any one of those key elements is missing, it doesn’t work.”
“Criatividade tem muito a ver com experiência, observação e imaginação, e se qualquer um desses elementos-chave estiver faltando, não funciona.”
Enfeitiçado por essa passagem sobre criatividade, as autorreflexões se impõem a mim e ao processo de escrita desse texto (são inseparáveis, afinal). Acredito categoricamente que não existe autossuficiência nesse mundo, e desde que adquiri essa coisa confusa que se chama consciência, me pego admirando pessoas.
Talvez muito tenha a ver com o contexto em que fui criado e inserido desde muito novo: dois irmãos mais velhos, dois pais que sempre me deram muita atenção; entrar na escola um ano antes e, consequentemente, sempre ser o mais novo me colocou em uma posição onde absolutamente tudo me encantava (estilo, gírias, jeito de agir).
Por mais que hoje me considere alguém independente, minha alma, ou o que eu entendo que ela seja, jamais será autônoma por si só. Com o tempo, a veneração incessante se transmuta em desejo de ser alguém a partir daquilo, e não, literalmente, o que aquelas pessoas reproduzem. Sobram a inspiração e o desejo irrefreável de inserir tudo em cada ato, cada palavra.
No caso de Dylan, essa veneração se une à irracionalidade apaixonada e se apresenta na forma de “Bob Dylan Blues”: “I got a real gal I’m loving, And Lord I’ll love her till I’m dead; Go away from my door and my window too, Right now”. Já a transformação de alguém em uma letra através dessa observação diária e inspiração se apresenta em Masters of War, sua música politicamente mais densa do álbum. Suze vivia política e o introduziu a esse universo.
A capa de Freewheelin’ por si só é um dos quadros mais lindos que já vi. O calor da foto, debruçado sobre a clara atração entre os dois, auxiliados pela coloração sépia – que me agrada muito –, une-os mais do que qualquer clima gelado poderia os obrigar. Dylan parece sentir mais frio do que suas roupas e postura demonstram, embora suas mãos, tão escondidas quanto seu pescoço, demonstrem o contrário. Suze Rotolo, a mulher ao seu lado, parecia sentir menos frio do que seu sobretudo gigantesco e suas altas botas faziam parecer. Ela aparenta ser mais velha que ele, embora tivesse 2 anos a menos, com 18. Dylan parece reclamar de algo, ela parece não ligar. Parece saber mais das coisas. Parece saber da verdadeira importância daquele momento, flertando com essa ideia com seu enorme sorriso.
Suze era filha de comunistas, voluntária no Congresso de Equidade Racial e organizadora de alguns protestos do movimento pelos direitos civis. Naquela jovem idade já tinha perdido seu pai, e a fervente cena musical e artística de Greenwich Village era naturalmente um escape que ela vivia intensamente.
Dylan era um garoto qualquer, oriundo de Minnesota, ainda sem muito a dizer (o que explica, em parte, o fato de apenas duas das treze músicas de seu primeiro álbum autointitulado serem autorais), mas que naturalmente faria parte do mundo tão encantador para ela.
A inevitabilidade dessa relação simbiótica se consumou rápido e foi ganhando vida e forma através da arte e da existência cotidiana de ambos. Pouco tempo depois de terem se conhecido, estavam morando juntos num apartamento pequeno e de fundos no terceiro andar de uma rua pouco movimentada em Nova Iorque. Sem vista qualquer das janelas, o desejo incessante por alimentar a fome um do outro por significado se encontrava ali mesmo, no pequeno universo idealizado deles, alugado a 60 dólares por mês.
Três meses depois que a foto foi tirada, um dos álbuns mais importantes de todos os tempos ganhou vida. Os Estados Unidos viviam o clímax da Guerra Fria e o início da Guerra do Vietnã, mas o romantismo e a espontaneidade estampada ali não pareciam banalizar o momento vivido, muito menos seu conteúdo.
Entre críticas sociais e políticas e momentos expositivos e vulneráveis de sua relação, o “Livre Bob Dylan” é, direta e indiretamente, um álbum sobre sua livre companheira: “Ela irá dizer pra você quantas noites eu fiquei acordado escrevendo músicas e mostrando pra ela pra perguntar: isso está certo? Eu sabia que seus pais eram associados com uniões e ela estava nessa coisa de igualdade-liberdade muito antes de mim” (fala de Dylan para seu amigo e eventual biógrafo, Robert Shelton).
Enquanto ele possuía essa habilidade de complicar o óbvio e santificar o ordinário (como na poesia Talkin’ World War III Blues, com 13 versos e nenhum refrão: “Down at the corner by the hot-dog stand I seen a man I said ‘Howdy friend, I guess there’s just us two’ He screamed a bit, and away he flew Thought I was a Communist”), ela possuía o talento de se adaptar com facilidade ao que a vida mandava em sua direção, coisa que causava um medo tão visceral em alguém (Dylan) que, futuramente em sua carreira, iria parecer imune a isso: “I’m a-wondering if she remembers me at all Many times I’ve often prayed In the darkness of my night In the brightness of my day” (Girl from the North Country).
Ela é pragmática quando fala sobre o passado em seu livro: “Tudo, constantemente, pode ser embaralhado e reordenado de todas as maneiras possíveis. A nostalgia, barata ou não, é sempre cara”.
Suze Rotolo voltou para a Itália, sua terra natal, em 1964 para estudar artes, e não olhou para trás. No mesmo ano, Bob Dylan ainda compôs e posteriormente deu vida a duas das minhas músicas favoritas, ambas em homenagem a ela: Mama, You’ve Been on My Mind e Boots of Spanish Leather.
Ele não precisou de muito tempo para deixar seu primeiro amor ir, afinal, as coisas naturalmente se repetem de formas diferentes, como Suze leciona através de seu modo de viver, e tanto um quanto o outro iriam voltar a amar e buscar inspiração em outras relações.
A beleza do retrato apaixonado dos dois e eternizado em um período específico é justamente a impermanência que fica como lição e, consequentemente, a urgência necessária de viver e criar através do outro.
Por mais que hoje Bob Dylan possua mais de 50 álbuns, as coisas tiveram que começar em algum lugar. A resposta para algo, como cita sua música mais famosa, de fato pode estar no vento, mas perceber isso sozinho, sem folhas para serem sopradas de galhos em direção ao chão, é praticamente impossível.
Dylan e Rotolo nunca mais foram os mesmos depois de trilharem seus caminhos juntos e se despedirem, mas as marcas estavam eternizadas. Ela veio a falecer em 25 de fevereiro de 2011, e no mais novo filme sobre a carreira do cantor, Rotolo recebe o nome de Sylvie Russo. Inicialmente, por mais que as iniciais sejam as mesmas, a escolha me deixou confuso e até um pouco indignado. Tudo para descobrir que foi o único pedido de Dylan em relação ao filme. “Ele queria honrar a privacidade de Suze e a complexidade do relacionamento deles.”
Ela não era apenas mais uma corda em uma guitarra de Bob Dylan.