Dylan e Política: contraditório, honesto e libertino
Parece ridículo, e até pedante, tentar falar de coisas tão vastas. Assim é a obra de Bob Dylan/Robert Zimmerman. Quanto mais se lê e se descobre sobre, mais parece que os significados se expandem. As respostas evasivas sobre as canções, a postura cômica. Se engana quem acha que decifrou algo. Joan Baez, inclusive, brinca com a impressão própria de Dylan sobre suas músicas no documentário No Direction Home (2005), imitando Bob: “Sabe, daqui muitos anos, todos esses babacas vão escrever sobre minhas músicas. Eu não sei de onde vêm nem sobre o que são. Mas vão escrever sobre elas.”. Eu sou um dos babacas.
A sensibilidade para os temas sociais e subjetivos chamam atenção de imediato. A vontade de mastigar as letras, as melodias metamorfoseadas a cada nova apresentação, o contexto. Na presença hipnótica das gravações ao vivo, as palavras imediatamente ganham corpo, voz, eco e peso. A simplicidade possibilita certa iluminação, que por vezes pertencem só aos filósofos. Dylan cria em suas canções um mundo que habita entre a realidade e ficção, permitindo ao ouvinte criar sua própria significação. Se ao final de Talkin´World War III Blues, do álbum The Freewheelin´Bob Dylan (1963), Dylan canta “I'll let you be in my dreams if I can be in yours” (eu deixo você estar nos meus sonhos se eu puder estar nos seus), nessa comunhão entre autor e plateia podemos dar significado aquilo que as vezes nos parece enigmático, sejam sonhos de amor ou pesadelos de guerra.
Notoriamente, parece impossível desassociar Bob Dylan e política, mesmo que com certo repúdio do próprio cantautor em se manifestar. E que mensagem nos deixa as canções? A resposta, por mais clichê que pareça, é: depende. Mesmo tendo se afastado rapidamente do frenesi político, a carreira dele sempre será marcada por eventos como A Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade, de 1963, na qual Martin Luther King Jr. proclama seu discurso “I Have A Dream”, ou o menos emblemático, embora importante, Live Aid de 1985, contra a fome na Etiópia.
Antes de falarmos da música, me parece importante tentar entender quem é Robert Zimmerman. Afinal, pensar a relação arte-política é complexo e tanto ser artista quanto ser um ator político são atividades que carregam consigo uma vida inteira. Nascido em Dulluth, e criado em Hibbing, ambas em Minnesota e conhecidas por serem cidades operárias ligadas a exploração de ferro, Dylan tem como ídolo-inspiração Woody Guthrie, cantautor que vem de uma tradição sindicalista muito forte e era rodeado por comunistas e anarquistas. Dylan encontra aí algo a dizer, uma postura de rebeldia com o mundo. E antes mesmo de conhecer a obra de Guthrie, já havia se apaixonado pela geração beat ao ler On The Road (1957), de Jack Kerouac, além de poemas do seu futuro amigo e conselheiro Allen Ginsberg.
Aqui começa a chave de leitura para interpretar a obra de Dylan, suas posições e desenrolos. A mistura entre vida operária, a metafísica pré-hippie dos beat, as influências comunistas de Ginsberg, junto a herança judia de mitologia épica formam um caldo interessante de influências que se apresentam misturadas em meio as letras das canções. Um pouco me lembra de algo do modernismo brasileiro em suas antropofagias, misturando o tradicional/folclórico, uma noção do sagrado, com ideias de progresso e liberdade, com a necessidade de se criar uma nova linguagem para um novo mundo; ao passo que mais a frente desemboca em um século XX repleto de ambiguidades e contradições.
A ENFERVESCÊNCIA
O contexto no qual Dylan se difunde, em seus meteóricos primeiros anos de carreira, através de dois discos que se tornam instantaneamente reverenciados: The Freewheelin´ Bob Dylan (1963) e The Times They´re A-Changin´ (1964), é em meio à ebulição social das marchas pelos direitos civis e os protestos anti-guerra do Vietnam. Seguindo um caminho oposto ao sucesso da época, Dylan conseguiu por em palavras e acordes um conjunto de ideias que se perpetuava através de toda extensão dos Estados Unidos, e para além dele. Em um mundo já acostumado com Elvis Presley e a Rockabilly, o estilo de garoto do interior, operário, ingênuo, porém astuto e irônico, não era exatamente uma receita para o sucesso. Apresentar-se enquanto um cantor folk poderia ser um tiro no escuro em uma indústria musical em brusca mudança e com sede por novidade e hits de rádio. Contudo, as canções de Freewheelin´ e The Times They´re A-Changin´ convocam o público a enfrentar dilemas que estavam sendo escancarados no debate público estadunidense, fazendo sucesso instantâneo.
Blowin´ In The Wind, faixa que se tornou um hino, retrata de forma simbólica a opressão das pessoas comuns, ao mesmo tempo em que demonstra certa impaciência por mudança de forma muito idealista, sem especificar que resposta é essa que a comunidade procura. Primeiro sucesso e resumo perfeito de uma carreira que nunca quis se explicar ou, ainda menos, explicar o mundo.
Ainda em Freewheelin´, em meio a canções românticas, Dylan consegue engajar seus comentários sociais de maneira quase bíblica. As músicas são épicas e grandiosas. As narrativas demonstram perversão, caos, dúvida. As canções não permitem ao ouvinte o sossego da isenção e, ao criar uma pintura - afinal como disse Dylan em entrevista de 1966 para Time Magazine: “Truth is a plain Picture” (a verdade é uma imagem simples) - a única alternativa que resta é fazer parte do sermão. Desse conjunto de canções destaco Masters of War, crítica direta a indústria armamentista e sua burguesia financiadora da guerra do Vietnam:
“You that never done nothin’
But build to destroy
You play with my world
Like it’s your little toy
You put a gun in my hand
And you hide from my eyes
And you turn and run farther
When the fast bullets fly”
Em A Hard Rain´s A-Gonna Fall, voltamos, assim como na faixa inicial, ao tema da música de maneira mais poética e, diferentemente da faixa inicial, surrealista.
“Oh, what did you see, my blue-eyed son?
Oh, what did you see, my darling young one?
I saw a newborn baby with wild wolves all around it
I saw a highway of diamonds with nobody on it
I saw a black branch with blood that kept drippin’
I saw a room full of men with their hammers a-bleedin’
I saw a white ladder all covered with water
I saw ten thousand talkers whose tongues were all broken
I saw guns and sharp swords in the hands of young children
And it’s a hard, and it’s a hard, it’s a hard, it’s a hard
And it’s a hard rain’s gonna fall”
Na repetição do verso-título da canção, agrava-se o teor apavorante da música. Apesar de Dylan não assumir essa posição e deixar ao ouvinte a interpretação da letra, essa música é lançada um ano após a Crise dos Mísseis de Cuba, criando uma interpretação inerentemente política dela.
Já em Oxford Town, a menor faixa do álbum - com menos de dois minutos -, começamos a deslumbrar o que depois se desenrola em The Times They´re A-Changin´ (1964), em uma música de narrativa concreta que explora o tema do racismo, escancarando a injustiça e o desdém coletivo com tema. Assim, como em Blowin´In The Wind, convoca a plateia a se colocar de um lado dessa história.
Retornando ao tom surrealista, em Talkin´World War III Blues, Dylan narra a ida de um homem a um psiquiatra ao qual ele conta seu sonho sobre a Terceira Guerra Mundial (One time ago a crazy dream came to me/ I dreamt I was walkin' into World War Three/ I went to the doctor the very next day/ To see what kinda words he could say) (Uma vez atrás tive um sonho louco/ Sonhei que estava entrando na Terceira Guerra Mundial/ Fui ao médico no dia seguinte/ Para ver que tipo de palavras ele poderia dizer). Aqui já com um tom irônico, abordando a loucura e o irracional, a música retrata todo o absurdo que tanto no sonho quanto na vida mundana permeiam o tempo do pós-guerra. (I said, hold it, Doc, a World War passed through my brain/ He said, nurse, get your pad, this boy's insane/ He grabbed my arm, I said ouch/ As I landed on the psychiatric couch) "(Eu disse, espere, doutor, uma guerra mundial passou pelo meu cérebro/ Ele disse, enfermeira, pegue seu absorvente, esse garoto é louco/ Ele agarrou meu braço, eu disse ai/ Enquanto eu caía no divã psiquiátrico)”.
Por fim, amarra a canção demonstrando através da figura do doutor que essas angústias, aparentemente individuais, se alastram por toda a população (Well, the doctor interrupted me just about then /Sayin, Hey I've been havin' the same old dreams) (Bem, o médico me interrompeu naquele momento /Dizendo: Ei, eu tenho tido os mesmos velhos sonhos).
De maneira incisiva, porém ainda embrionária The Freewheelin´Bob Dylan denuncia a crise humanitária que vive os EUA, ilustra os sintomas mórbidos e assume o lado dos oprimidos. E em sequência, com o disco The Times They´re A-Changin´, ganha ainda mais robustez. Nessa fase, e sem ainda ter conhecido Allen Ginsberg, as primeiras influências sobre conscientização política de esquerda de Bob são resultado do relacionamento com Suze Rotolo, que tinha pais ativos no Partido Comunista e, inclusive, foi a Cuba, conhecendo Che Guevara e Raul Castro, para participar de manifestações a favor da ida e vinda de pessoas entre os dois países. A partir desse momento Dylan começa a ser visto o porta-voz de uma geração.
Com ambos álbuns mencionados sendo basicamente um compilado de histórias que atravessam o modo de fazer política yankee, com exceção às faixas One Too Many Mornings e Boots of Spanish Letter (ambas provavelmente dedicadas a Suze e sua partida para o exterior), Dylan junta neles a energia rebelde que o impulsiona com histórias cotidianas sobre descriminação, seja ela pessoal como em Ballad of Hollis Brown e The Lonesome Death of Hathie Carroll, seja buscando uma análise estrutural da sociedade americana em músicas como Only a Pawn In Their Game, que fala sobre o assassinato de Medgar Evers e suas implicações, e, por fim, With God on Our Side.
Essa última carrega um peso familiar para nosso momento político, ao contar e justificar toda a atrocidade dos dirigentes da nação ao longo história americana devido à separação religiosa. Se em 1776, foram os indígenas, em 1853 os hispano-americanos, podemos afirmar que em 2025 são os palestinos. Em comum todas as canções trazem a percepção de que aqueles envolvidos nas narrativas fazem vista grossa em relação às injustiças, sendo essa a principal doença que se espalha de costa a costa na América.
É devido a esse disco, e a eventos próximos a ele, que Dylan começa a ser visto como o porta-voz da geração. Pouco antes do lançamento de The Times They´re A-Changin´(1964) Dylan faz uma de suas poucas aparições políticas ao cantar a ainda não lançada Only a Pawn In Their Game, juntamente com Blowin´ In The Wind e We Shall Overcome, esta última juntamente da autora Joan Baez, na Marcha de Washington por Trabalho e Liberdade (1963).
Logo após, é condecorado com o prêmio Tom Paine da Emergency Civil Liberties Union. Em seu discurso de agradecimento pelo prêmio Dylan se rebela e se opõe a política tradicional. Mesmo sendo um evento com grandes figuras do campo progressista norte-americano, o jovem de 22 anos se diz “orgulhoso de ser jovem”, e acrescenta “Eu queria que todos vocês não estivessem aqui hoje. Aí eu veria pessoas com cabelo e tudo mais que remetesse à juventude. Quando vejo as pessoas que criam as leis que sigo, elas não têm cabelo. Isso me incomoda. Não existem preto e branco, nem esquerda nem direita para mim. Só existe para cima e para baixo, e para baixo é muito perto do chão. Estou tentando ir para cima sem pensar em nada trivial, como política.”
Apesar de Dylan sempre recusar as alegações de politização da música, afirmando que não são “canções de protesto”, mas, “canções de rebeldia”, como diz em sua autobiografia Crônicas: Volume 1 (2004), tudo em sua primeira fase remete a isso. Mesmo ao afirmar que “Eu não penso e então escrevo. Eu simplesmente reajo (ao mundo) e coloco no papel.” Em TTTA-C Dylan segue a tradição folk, tanto em sonoridade quanto ao criar canções entorno de incidentes reais. E nesse momento, ao ganhar reconhecimento popular, Dylan avança algumas posições a música pop. Agora ela se torna um espaço possível e reconhecível de crítica, se expandindo para além do yeah-yeah-yeah que imperava na Inglaterra ou da rockabilly juvenil, tematicamente distante do mundo político.
RENEGADO
Mamãe, não quero ser prefeito
Pode ser que eu seja eleito
E alguém pode querer me assasinar
Eu não preciso ler jornais
Mentir sozinho eu sou capaz
Não quero ir de encontro ao azar
(Raul Seixas, 1987)
A sequência de discos que vem após o momento inicial de sua carreira: Another Side of Bob Dylan, Bringing It All Back Home e Highway 61 Revisited, gera uma mudança significativa não apenas na sonoridade, mas também no papel que Dylan começa - ou deixa - a desempenhar.
Em Another Side of Bob Dylan (1964), a sonoridade segue a linha da tradição folk. Porém as letras, em se tornam auto-reflexivas e não políticas. A única faixa que poderia ser considera política no álbum, “Chimes of Freedom”, descrevida por Dylan como uma “epifania social”. Ainda assim, a canção se associa muito mais a A Hard Rain´s A-Gonna Fall, misturando imaginário apocalíptico e as forças da natureza, do que as injustiças sociais que eram retratadas nas “canções de rebeldia”.
“As the echo of the wedding bells before the blowin’ rain
Dissolved into the bells of the lightning
Tolling for the rebel, tolling for the rake
Tolling for the luckless, they abandoned and forsaked
Tolling for the outcast, burning constantly at stake
And we gazed upon the chimes of freedom flashing”
Em uma entrevista para o The New Yorker, Dylan se explicou “There aren’t any finger-pointing songs in here’…‘Me, I don’t want to write for people any more—you know, a spokesman. From now on, I want to write from inside me, and to do that I’m going to have to get back to writing like I used to when I was ten—having everything come out naturally”.
“Não tem nenhuma música apontando o dedo aqui... Eu não quero mais escrever para as pessoas — sabe, ser um porta-voz. De agora em diante, quero escrever de dentro de mim, e para isso vou ter que voltar a escrever como eu fazia quando tinha dez anos — fazendo tudo sair naturalmente.”
No próximo album, Bringing It All Back Home (1965), começa a aproximação de Dylan com o rock n´roll. Gravando metade do disco com guitarra elétrica e a outra metade com acústica, é acusado de ser um vendido à indústria e consegue alcançar em parte o distanciamento da imagem de representante da política da nova esquerda estadunidense. Na faixa de abertura, Subterranean Homesick Blues, apesar de não abordar temas como os direitos civis ou a liberdades de expressão, ainda há um tímido comentário político. Podemos perceber nas letras pelo menos certa provocação contra a conformidade em trechos como “Ah get born, keep warm/Short pants, romance, learn to dance/Get dressed, get blessed/Try to be a success”, que em rimas aceleradas demonstra a revolução musical pela qual a década de 1960 passa. Além disso, a música ainda serviu de inspiração para o grupo de contra-cultura The Weathermen a partir do trecho “You don’t need a weatherman to know which way the wind blows”.
Somente se aproximando do final do disco, que a temática política volta à tona com It´s Alright Ma (I´m Only Bleeding). A canção de sete minutos denuncia as ilusões da sociedade americana, particularmente a compulsão por se encaixar na máquina comercial e a busca meritocrática por sucesso.
Advertising signs that con you
Into thinking you are the one
That can do what's never been done
That can win what's never been won
Meantime life outside goes on
All around you
Placas de propaganda que te enganam
Fazendo você pensar que você é o único
Que pode fazer o que nunca foi feito
Que pode vencer o que nunca foi vencido
Enquanto isso, a vida lá fora continua
Ao seu redor
Chegando ao auge de sua transformação, e em seu disco mais ousado até o momento, Highway 61 Revisited demonstrou todo o potencial na revolução musical que Dylan causa a partir do Newport Folk Musical Festival de 1965, ilustrada pela faixa inicial Like A Rolling Stone. Aqui, ainda com músicas politicamente conscientes, Dylan consegue alcançar novos territórios artísticos ao focar em questões mais existencialistas/filosóficas. O estilo que se apresenta nesse álbum, inicialmente expressado em Chimes of Freedom e It´s Alright Ma (I´m Only Bleeding), ganha potência intoxicante, talvez devido ao uso de heroína, e define os próximos anos do cenário musical.
O próprio vocabulário de Dylan torna-se elétrico, porém, ao mesmo tempo que muito particular e completo de referências a outras obras, é completamente popular, atualizado e hipnotizante. Uma espiral poética repleta de vislumbres, pequenos frames sobre tudo que acontece ao redor. Neles, cada um dos ouvintes tem o prazer de em uma frase ter a percepção de um todo referido ali, seja um todo de novidade ou rotineiro. “Truth is a plain picture”, já diria poucos anos antes em entrevista à Time Magazine.
As três canções que se aprofundam enquanto ilustradoras da narrativa caótica, de loucura e instabilidade social, são Like a Rolling Stone, Highway 61 Revisited e Desolation Row, todas se assemelhando em temática com It´s Alright Ma.
Like A Rolling Stone apresenta uma nova perspective de libertação pessoal. Começando em tom pessimista e até assustador, ao narrar a queda socioeconômica de uma mulher abandonada e despreparada para a vida fora de seus privilégios.
“You’ve gone to the finest school all right, Miss Lonely
But you know you only used to get juiced in it
And nobody has ever taught you how to live on the street
And now you find out you’re gonna have to get used to it. ”
No trecho acima, segue a crítica ao materialismo compulsivo e as instituições formais como a escola/faculdade. Assim como na sequência vem a reprovar aqueles que estão ao redor dessa figura feminina, os quais se mostram manipuladores, como na figura do “diplomata”.
“You used to ride on the chrome horse with your diplomat
Who carried on his shoulder a Siamese cat
Ain't it hard when you discover that
He really wasn't where it's at
After he took from you everything he could steal.”
É possível, através dessa canção, perceber parte da mudança política em Dylan pela postura do narrador. Aqui muito mais como um honesto e desapegado observador, e menos como um narrador épico de eventos transformadores. Assim, a música se encaminha pra noção existencialista derradeira ao apontar todos esses vícios sociais e impulsionar a necessidade de reconhecimento e superação da efemeridade das coisas.
“When you got nothing, you got nothing to lose
You're invisible now, you got no secrets to conceal”
Já em Highway 61 Revisited, Dylan novamente trazendo temas bíblicos, se aproximando da narrativa apocalíptica, imagina o futuro dominado por atos violentos e mercenários, composto por um retrato com personagens históricos, com a aparição o Rei Luis XIV por exemplo, e fictícios alocados nessa estrada que tudo permite:
Yeah, God said to Abraham, "Kill me a son"
Abe said, "Man, you must be puttin' me on"
God said, "No", Abe said, "What?"
God said, "You can do what you want Abe, but
The next time you see me comin' you better run"
God said, "Where do you want this killin' done?"
Out on Highway 61
Aqui retorna aos significantes anos de estrada que impulsionaram sua carreira e vida, como em On The Road e Bound For Glory (biografia de Woody Guthrie). Porém, dessa vez, à estrada sugere a confusão sem perspectiva de melhora. A estrada como condenação, não sinônimo de liberdade, onde o capitalismo é soberano e a violência é vendida como commodity. This is America.
“Now the rovin' gambler he was very bored
He was tryin' to create a next world war
He found a promoter who nearly fell off the floor
He said I never engaged in this kind of thing before
But yes I think it can be very easily done
We'll just put some bleachers out in the sun
And have it on Highway 61.”
"Agora, o jogador errante estava muito entediado.
Ele estava tentando criar uma próxima guerra mundial.
Ele encontrou um promotor que quase caiu do chão.
Ele disse: "Nunca me envolvi nesse tipo de coisa antes.
Mas sim, acho que pode ser feito muito facilmente."
Vamos apenas colocar algumas arquibancadas no sol
e fazer isso na Rodovia 61.
Finalmente, na faixa de 11 minutos, em Desolation Row, mais uma vez inspirado pela geração Beat de escritores que o precede, a narrativa quase kafkaniana mistura personagens históricos e literários, ciganos, peregrinos e ladrões em um mundo agridoce. Se por um lado a narrativa nos joga em um mundo aparentemente melancólico, por outro nos mostra como só através dele que podemos de fato viver. Ilustrado na figura de Ofélia, “On her twenty-second birthday/She already is an old maid”. É uma figura trágica pela qual nos compadecemos.
Enquanto isso, Casanova, o aventureiro e escritor italiano do século XVI, conhecido pela sua vida amorosa é “envenenado com palavras e morto pela auto-confiança” (tradução livre), sendo punido por viver sua própria Desolation Row. A canção, portanto, se impõe ao assumir as dificuldades e desprazeres da vida, no lugar de um otimismo barato, e afirma que o bem viver é uma prática, não um valor moral.
E DAÍ?
Após essa exaustiva análise das duas fases mais memoráveis de Bob Dylan, ao mesmo para o público geral, que mensagem fica dessa vida? Primeiramente, nosso cantautor irônico e grosso preferido não gostava de dar explicações sobre as músicas. Se ele foi a voz de uma geração, foi porque o quiseram. Escolhido.
Se tornando cada vez menos disposto a ser porta-voz de qualquer movimento, ele faz justiça aos movimentos. Acho que nem em 2025, nem em 1965 seria tão interessante ter um músico branco, por mais aliado que ele seja, sendo o rosto do movimento pelos direitos das pessoas negras, ou das mulheres, etc. Se, como retratado em sua autobiografia Crônicas: Volume I, as pessoas iam até sua casa para suplicar por sua participação em qualquer protesto, Dylan teve a humildade e a sabedoria de entender que o que ele faz para mudar o mundo é música. Com ela decida você o que fazer.
As músicas que retratavam o dia a dia nebuloso da década de 1960 deram lugar a comentários sociais mais amplos. Deixando de retratar casos de injustiças e de racismo, seguiu ainda evidenciando as problemáticas de uma sociedade capitalista parasitária, buscando uma nova sensibilidade, e por que não, um novo modo de viver. Ele retrata os tempos sombrios que vivemos, que podem ou não resultar em transformação, a depender de nós como coletivo.
Tudo que foi dito acima é fruto meu e das opiniões de outras pessoas que li ou ouvi. No que percebo, a trajetória política é uma consequência da vida de Dylan. Primeiro um garoto interiorano com fortes raízes trabalhistas, seguido por um homem perdido em meio a loucura da cidade, da fama, da glória. Também não podemos esquecer que depois do acidente de moto em 1966 e de sua vontade ainda maior de se recolher dos holofotes Dylan, quando se converte ao cristianismo, e até isso tem paralelo com seu momento de maior celebridade musical.
Se converter, naquele momento de uma vida, foi mais um ato inesperado, rebelde. É também, assim como a música folk, uma volta a tradição. Além disso, é uma postura que só lhe permite um Senhor. Assim, na vida terrena, segue sendo um teimoso transgressor. Seja da cultura, da industria musical, do que queremos que ele seja.