CRÍTICA | LIBErtador - neggs e yangprj

Eu sou uma palavra com 9 letras
VITORIOSO
Cabelo é ruim nós é pior eu sou bom e novo
Minha prata te cega
Blindado de inveja eu sou valioso
Não fecho com …
Eu sou orgulhoso
— NEGGS

Um sopro de novidade no cenário do RAP brasileiro vem de Teresina, Piauí, nas rimas emancipatórias de NEGGS. Incorporando traços de boombap e drill, os beats carregam as nuances que a lírica pede em cada contexto. E, em contraste a sutileza dos detalhes, a violência da metamorfose ansiada se impõe desde o primeiro compasso.


O futuro precisa ser sonhado. Um projeto que não passa de aposta, uma viagem com destino não programado. Entre esse misto de desejos e incertezas que NEGGS e Yangprj lançam seu segundo trabalho conjunto LIBERTADOR. Nele, a arte, que tende ao âmbito da inutilidade, é realocada em máximo proveito quando operando em função da autonomia, seja de um povo ou indivíduo. Sabendo do poder de encantamento da palavra, a obra estabelece uma ética intransponível na qual o dinheiro é fundamental, mas não o objetivo, e a fama não passa de resíduo de algo maior.

Enunciando seu próprio grito de independência, NEGGS destaca como ser artista fora do eixo SP-RJ no Brasil pode ser desafiador. LICENÇA POÉTICA junta o drama do cotidiano, perfeitamente incorporado nos beats de Yangprj com a necessidade de romper barreiras. 

Não querer ir pra São Paulo
O mais subestimado
Fiquei grande demais pro meu estado
Saturado versos maduro e eles tão de vez
Iam me chamar de BK se fosse 2016
E a única forma de querer dizer q eu não sou top 3
É se rap for sobre views verificado é show pra burguês
— LICENÇA POÉTICA

Pede licença para começar o disco, para se apresentar como artista e, sem heresias, criticar os que vieram antes dele. A faixa LIBERTADOR, com piano suave integrado ao beat, traz o dilema de ser um homem comum, e por isso extraordinário, e a dúvida de si mesmo. 

Comparação é antagonismo de vitória
A Confiança precede o sucesso
A desavença ou desafeto
Com Olho gordo seca o prato
Depois do primeiro sim todo não te torna um ingrato
é que talvez seja um sádico um anjo um mágico
Ao tentar transformar a música em um salário
— LIBERTADOR

O PROCURADO, em clima de mistério noir, projeta o confronto ao mesmo tempo em que o eu lírico desenvolve a necessidade por dinheiro e as vivências deturpadas do mundo trabalho, enquanto rememora as tentações que “corrompem”, sejam sexuais ou financeiras. A marca da música é o empoderamento pelo dinheiro e pelo exemplo (Kendrick Lamar, Angela Davis).

E toda vez que eu penso ou ouço sobre dinheiro fácil
Eu me mantenho em silêncio e adianto meu cavalo
Me dá meu copo e já era
Tô ficando embriagado
É 4 hora da manhã eu vou trabalhar virado
e que se foda o gerente
Todos os babão safado
Hoje tá bem diferente
— O PROCURADO

Um segundo momento do disco, iniciado em INTERLÚDIO 2016 e se estendendo por mais cinco músicas, tudo se intensifica e enraivece. Destaco ÓDIO E SONHOS e FLORENTINO PÉREZ. Nesse recorte de músicas, as músicas se afastam de qualquer romantização e o tom frio e desapegado é aprofundado, desenvolvendo com mais intensidade as lógicas de conflito, seja com o mundo interno,  com a família, com o crime ao seu redor ou com a indústria musical.

Desculpa pra quem é meu fã não sou um cara da hora
Eu tenho que cuspir essas linhas pra não ter que me entupir de droga
E eu não vejo a hora de acordar e perceber que o meu rap agr virou moda
— ÓDIO E SONHOS

O terceiro ato do álbum conta com 3 músicas em leve contraste em relação ao momento interior. BARATA VOA parece o  ápice dos confrontos que começaram na segunda parte, encaminhando uma vitória e destacando a distância de NEGGS para outros MCs, agora sem destaque para as fragilidades. 

Beat boombap eu boto na chapa
De drill eu boto na chapa
A mais linda eu boto na chapa
Sem amor por vadia ingrata
Sem respeito por vira lata
A cena é igual ponto G
Nem com PS eles acha
Barata voa mais ainda é uma barata
— barata voa

É o momento do amadurecimento e da responsabilidade. Na sequência, VITORIOSO, o ponto mais alto do disco é a marca da consolidação total. A confiança que carregam é a de quem já venceu e nada tem a provar. 

Concorrência diz que me enxerga
Só se for usando telescópio
Minhas linhas de outro planeta
Tuas linha nego só o óbvio
Nem é só o ódio, eu usei minha confiança
Minha sede de ter malote é diferente da tua ganância
— vitorioso

Na faixa final, NÃO QUERO PIEDADE, a música retoma a lógica do combate e sonoramente relembra 2016 e a Pirâmide Perdida (BK, Sain, Luccas Carlos, JXNVS, etc), lembrando que a liberdade simbólica pode ter sido conquistada mas sua manutenção é um trabalho diário. 


Tematicamente, o disco mantém o que já é estabelecido canonicamente no hip-hop. Elementos estes, como a autoafirmação, a bravata em relação a outros rappers, a exposição da realidade brutal, a necessidade de pensar cada movimento, o privilégio branco, que são esperados já em qualquer álbum do gênero. O destaque que gostaria de dar pra esse disco vai em direção principalmente ao trabalho de Yangprj como produtor, que conduz pela mão o disco de forma imperceptível. O acompanhamento da narrativa pela trilha é o que possibilita o impacto tão destacado das faixas finais em um crescendo modulado perfeitamente. Já em relação às letras de NEGGS, por mais que tratando de assuntos amplamente versados, consegue imprimir um tom de autenticidade, tendo estilo e métrica próprios. É ótimo ver o hip-hop se libertar da lógica mercantilista e da produção acrítica. Foi ótimo ficar sabendo desse álbum por indicação de uma amiga e não pelo algoritmo me empurrando a última novidade do hip-hop pasteurizado que circula de storie em storie. Além de ter mais liberdade devido a menor visibilidade, a dupla se propõe a se utilizar da cultura para criar exceção. 


7.5













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