Criolo 50 @ áraujo Vianna - 17/10/2025
A turnê que misturou tudo e acertou em cheio
Mais que um show, o espetáculo foi uma lição sobre arte, tempo e resistência.
Já eram 21h30 daquela sexta-feira chuvosa quando resolvi subir as rampas do Araújo Vianna lotado para procurar algum centímetro quadrado em que eu pudesse assistir ao show. Enquanto apertava o passo, reparei em um lugar vazio perfeito: não era longe demais a ponto de atrapalhar, nem perto demais do palco a ponto de sufocar. Parei ali mesmo. Enquanto recuperava o fôlego do pulmão fumante, comecei a reparar no público ao meu redor: famílias unidas, pais que levaram seus filhos, filhos que levaram seus pais, casais apaixonados, bêbados, sóbrios… tudo. Por um momento, aquilo me tocou, quebrou minha expectativa, mas durou apenas um instante. O som para, as luzes se apagam, apenas um holofote solitário permanece. O público se levanta, e ovacionado surge Kléber Cavalcante Gomes, o CRIOLO.
Os tambores começaram a ser agredidos e só pela batida o povo reconheceu MARIÔ, música que costuma sempre abrir os shows do cantor e que não foi diferente na turnê que comemorou seu 50º aniversário. Sem meia conversa, Criolo e DJ DanDan (a.k.a Cassiano Sena) iniciaram o que seriam aproximadamente 2 horas de uma viagem pela carreira de um dos artistas mais influentes e inovadores da música brasileira contemporânea.
“Deu sold out então? Muito obrigado, nada é maior que a arte, obrigado RAP!”
Aproveitando o alvoroço do público, que não parou de cantar em nenhum momento, Criolo seguiu o show com Duas de Cinco e demonstrou um dos principais diferenciais da turnê: a composição da banda. Fiquei sinestesiado. O beat eletrônico se misturava com o sopro dos metais e a pele das percussões: sax, trombone, trompete, atabaque, agogô e provavelmente um monte de instrumentos que não consegui observar se fundiam às linhas agressivas que o MC cantava. Assim se sucedeu Sistema Obtuso, parceria do cantor com o grupo Tropkillaz, um grime que fez o público aumentar o BPM e começar a esquentar, e muito, o Araújo Vianna
Foi fenomenal observar a dinâmica que o artista montou e conduziu em seu show. Depois de tumultuar a plateia, DJ DanDan pediu para o público bater palmas, mudando completamente o ritmo. Então, Criolo iniciou um ponto (nome dado aos cânticos afro-religiosos) em homenagem ao orixá Xangô, conhecido por ser responsável pela justiça, pelo trabalho e pelas conquistas, escrito por Vinicius de Moraes e Baden Powell. Após a avalanche das três primeiras músicas, Canto de Xangô foi um pé no freio — uma pausa para respirar e aproveitar a viagem.
Quando a música terminou, Criolo aproveitou para se conectar com o público e — como ele mesmo citou — brincar de ser Celso Portiolli. O músico gritava “Eu te amo” para o lado esquerdo da plateia, que respondia a plenos pulmões; depois corria até o lado direito e fazia a mesma coisa, criando uma competição amigável que fez até o mais tímido dos presentes não querer sair perdendo. De forma tão natural quanto caminhar, o MC retomou o show com Esquiva da Esgrima — música da qual, assumo, não sou dos maiores entusiastas, mas que fez total sentido naquele momento do show.
Não há como não fazer menção honrosa ao DJ DanDan. Com seus natty dreads, o artista não só fez o papel de disc jockey, mas também dobrou as vozes do artista principal, e em alguns momentos foi até mais protagonista que o próprio Criolo (uma tarefa dificílima). Foi DanDan quem iniciou a primeira grande virada do show. Ao assumir as controladoras, o DJ conduziu uma viagem pelo raggamuffin, reggae e dub, vertentes muito importantes na carreira de Criolo, que muitas vezes se autoreferencia como Les Crioles. Além de se referir aos cantores mestiços que se colocam como personas declaradas na canção, o termo também alude ao processo de apropriação de uma língua, temas comuns nas músicas de origem caribenha.
Durante esse ato da apresentação, DanDan aproveitou o som eletrônico para fazer o público cantar Get Up, Stand Up e Is This Love - o que, por mais divertido que tenha sido, ocupou tempo de show, que poderia ter sido preenchido pelo vasto repertório do artista principal. Criolo, por sua vez, aproveitou para cantar Sambar Sambei e Pé de Breque, músicas caracteristicamente dentro do Reggae, mas surpreendeu o público ao dar uma palinha de Ainda Há Tempo e Sucrilhos no beat do Ragga. Nesse momento, marcado por uma iluminação esverdeada, confesso que o olfato me alertou da presença da Ital Herb no recinto, o que era mais que justificado.
Após passear por algumas músicas mais calmas e desconhecidas do público geral como Yemanjá Chegou e Ogum Ogum, o artista surge iluminado por luzes vermelhas para cantar talvez seu maior hit: Não Existe Amor em SP. Como esperado, celulares foram subindo para captar, ou tentar, o espetáculo do palco e talvez por ter escutado - e ele cantado - tantas vezes a faixa nos últimos anos, a música não foi a minha preferida do show. Percebi Criolo tão à vontade ao cantar outras músicas, que a música soou, para mim, quase como um fanservice, o que não deixou a composição menos linda na minha memória.
O cantor ainda separou mais um ato para o show, sim, mais um, mas que em momento nenhum deixou o evento cansativo. A produção trouxe ao palco dois bancos altos, onde Criolo e DanDan sentaram-se para dedicar um bom dedo de prosa ao samba, cantando Lá Vem Você, Meninos Mimados e Nó na Orelha. Os corredores laterais do Auditório se transformaram em pistas de dança para quem se arriscava a tentar sambar. Não eram grupos de dança nem entusiastas do ritmo, eram apenas pessoas descaradamente felizes, transbordando pelo corpo aquilo que somente a música é capaz de proporcionar.
Chegando ao final da apresentação, Criolo observou um cartaz em meio à multidão, nele estavam as palavras de uma professora agradecendo o artista por seu trabalho. Há algo mais lindo a se receber? Um poeta sendo referenciado por uma professora. Mas é claro que a admiração foi recíproca, o cantor fez questão de dedicar o show aos trabalhadores e professores, principalmente das escolas estaduais e municipais.
“Dedico esse show a todos professores de escolas públicas, sem educação esse show nunca aconteceria.” (Criolo)
O show encerrou com Subirusdoistiozin, a energia não diminui um decibel e, mesmo que já cansados, a plateia ecoou gritos de protesto, o que foi o melhor pedido de bis que o cantor poderia esperar. As luzes já estavam apagadas quando o refrão da música surge em um bpm muito acelerado, lembrando quase um Dubstep, jamais imaginaria o quanto eu gostaria dessa versão. O bis ainda foi composto por Grajauex e Convoque Seu Buda, devolvendo as pessoas que entraram molhadas de chuva, agora molhadas de suor.
Naquela noite de outubro, vivi quatro shows dentro de um só, uma aula de arranjo, composição e principalmente de dinâmica. Cinquenta anos de vida é um privilégio no nosso país, mas me senti realmente privilegiado de poder ver aquele espetáculo aos meus, ignorantes, 22. Foi impossível não se emocionar, naquele momento percebi a beleza do artista que me atropelava, já não bastava ser o menino Criolo Doido, o mais sensível dos poetas urbanos, agora Kléber já é homem, castigado por refletir sobre a vida e, que apesar de tudo isso, abriu um sorriso de acalanto naquele palco, como quem respira fundo e diz: Ainda Há Tempo.