Crítica | Vendrán Suaves Lluvias - Silvana Estrada

Gosto muito de conversar sobre luto, e recentemente, fui agraciado com uma das boas.


Sábado, dia 18 de outubro, sai pra caminhar com dois dos meus melhores amigos. Enquanto nos tornávamos paisagens porto-alegrenses, falávamos sobre a morte de alguns amores. Fomos ao Museu de Arte do Estado onde vi a arte como tradicionalmente conhecia morrer (era uma exposição infestada de quadros feitos por inteligência artificial).

Depois disso, sentamos em um bar argentino, que a partir de agora será o nosso bar. Encontramos outro amigo, e, surpreendentemente, abrimos nossos corações quebrados - apesar de juntos, nós quatro não somarmos cem anos - para falar das pessoas que se foram, ou melhor, que nos foram roubadas, nos deixando apenas a restrita opção de aprender a lidar.

Eu não sei nada sobre a vida, e não sei se algum dia vou achar que entendo alguma coisa. Tento apenas me manter atento a ela, porque é a única capaz de me ensinar sobre si própria. E é mais fácil e mais difícil do que parece: tudo é vida. As pessoas sabem tanto e os livros também. Mas as palavras, na minha opinião, sabem mais do que todas as outras coisas.

Tudo é tão fascinante que, sinceramente, as vezes me sinto sobrecarregado. Contudo, hoje me sinto bem: posso escolher de onde quero extrair essa vida e incorporá-la a mim. E bom, me conhecendo, vocês sabem o meu método favorito: A música, que reúne tudo que falei - pessoas, histórias, palavras. Então comecei a conversar sobre perdas com Silvana Estrada.


A capa me acertou antes de qualquer som: Silvana Estrada, com seu rosto ligeiramente inclinado, se parece muito com minha mãe (Sylvia Braga) quando jovem - pelo menos eu acho. Talvez seja só o cabelo ou talvez a tranquilidade. Há uma mistura de ternura e cansaço. De esperança como renascimento, e não como conserto. De quem está apenas esperando a chuva suave chegar (Vendrán Suaves Lluvias).

Minha mãe, 1983

O disco começa com um bolero rancheiro e um lindo e tênue conjunto de cordas, como se ela quisesse esbanjar sabedoria sabendo que mais tarde iria desmantelá-la. Nessa tentativa de se reconciliar com a ausência, ela vacila propositalmente. Se contradiz a cada linha (Cada dia te extraño menos, Aunque siempre me hagas falta, Ya perdí toda esperança ,Aunque, sin querer, te espero \\ Cada dia sinto menos saudades. Embora eu sempre sentirei sua falta, Já perdi toda esperança. Embora, sem querer, eu espere por você), enquanto os dois violões, como se fossem dois vieses, duas formas de viver, brigam por nossa atenção. Eu fico atônito.

A partir desse momento, os arranjos se complexificam e andam de mãos dadas com a composição escrita. Na verdade, fazia muito tempo que eu não escutava um álbum em que o humor dos instrumentos fosse tão compatível com o canto e os sentimentos de sua autora. Os trompetes introdutórios de Dime simulam um anúncio real em tom de ameaça (as vezes esse é o peso de se despedir): Dime si te vas o si te quedas. Dime si es de veras esta vez. Dime qué vamos a hacer ahora. As cordas orquestrais já introduzidas ali ganham mais força em Flores, faixa central do álbum e uma pintura grandiosa de liberdade: a admissão que há lugares onde, uma vez permeados de amor e cor, agora são inóspitos e sem vida alguma. Não nascem flores, nem há canto e é melhor ir embora.


O lado B do álbum é construído no silêncio. É mais comedido, mais sofrido, mais tímido, invertendo o processo de luto que eu conhecia: Para ela, a dor da emoção vem depois da observação racional dos fatos. Tregua, nesse sentido, é o pedaço de texto mais confessional com que já me deparei (sim, eu sou fã de Bob Dylan). É escrito em uma língua que não domino completamente (na verdade sei muito pouco de espanhol), mas pareço compreender por intuição. Silvana quase sussurra, como se não quisesse acordar a si mesmo desse estado entorpecido de saudade. O arranjo a respeita: apenas um violão e um clarinete que sofrem igualmente a cantora - Yo no te pido que vuelvas, Yo sé que estamos mejor así, Pero a veces quisiera pedirte una tregua, Salir a buscarte, volver a lo de antes, Que nada es lo mismo sin ti.

Em Como Un Pájaro, a ausência de luz, interior e exterior, faz parte do processo também. Ela vive no escuro, na noite, onde não pode ser vista ou exposta e quando pássaros não voam: Mientras todo el mundo duerme, yo me trato de sanar // Enquanto todo o mundo dorme, eu tento me curar.

Ela só percebe que existe luz quando tropeça em sua própria sombra, e toda a beleza e carinho que ela guardava no início do disco não podem mais ser vistos através da névoa - ou sequer ouvidos - sobrepostos pela tristeza inconsolável de sua voz e do piano que a acompanha: 

Y yo que no soy más que un mar de dudas, Que sola con mis sombras me tropiezo, Te canto como un pájaro en la bruma, Y todo lo que fuimos lo lamento

E eu, que não sou nada além de um mar de dúvidas Que tropeça sozinho com minhas sombras Eu canto para você como um pássaro na névoa E me arrependo de tudo o que fomos.

Eu achava que nada poderia me arrebatar mais, mas o clímax emocional ainda não havia chegado. Fui pego completamente desprevenido: “Devuélvanme a mis amigos, El brillo del sol ya no me arranca del frío y Devuélvanme a mis amigos” abre a faixa Un Rayo De Luz.

Pensei que, por ter perdido o pai muito cedo - mas tarde o suficiente pra ser completamente afetado - saberia lidar, saberia consolar, saberia o que dizer. Contudo, a linda e pesarosa pronuncia de seu “R” esticado surgiu de baixo dos meus pés, abalando todas minhas estruturas como um terremoto inevitável e paralisante.

Os violinos, juntos ao violão que se repete incansavelmente durante o transcorrer da música, buscando um caminho pra sair da melancolia mas não achando as casas certas, abrem espaço pra um dos pedaços de poesia mais lindos que já li em toda minha vida:

Cómo será de hermosa la muerte
Que nadie ha vuelto de allá
Cómo será de frágil la suerte
Que siempre elegimos amar
— Un Rayo De Luz

Tive que pausar minha audição pra me recuperar (estava ouvindo enquanto caminhava). Eu precisava de um abraço - ou melhor, que algum desconhecido olhasse pra mim e perguntasse se estava tudo bem só pra me arrancar risadas de constrangimento e eu poder seguir em frente tendo explicado que só estava ouvindo música.

Não recebi nenhum dos dois, então decidi acabar o disco, agora esperando pelo pior. “No Te Vayas Sin Saber”, só pelo título, me levou a lágrimas. Todavia, novamente fui surpreendido. Uma arpa é a primeira coisa que escuto, e o tom de voz de Silvana volta a ser otimista pela primeira vez em um bom tempo. E por outro bom tempo, são só os dois sob o holofote.

Vendrán suaves lluvias y el tiempo prudente
De un año y mil días pa' volverte a vеr
Y entonces la herida, lo quе ahora es urgente
Será una ventana con vistas de ayer

Chuvas suaves virão e o tempo prudente
De um ano e mil dias até que eu te veja novamente
E então a ferida, o que agora é urgente
Será uma janela com vistas de ontem

Ela brinca com o paralelo entre coisas abertas e sobre passado, presente e futuro. A ferida se torna uma janela; a dor que era urgente se torna uma fotografia do ontem. Seja uma perda amorosa, seja uma perda pessoal, ela consegue dar o nó final mais gentil que poderia e amarra essas duas coisas.

Não vá embora sem saber
Que eu te amo e sempre te amarei (…)

Que sorte a nossa de nos encontrarmos por ai(…)

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