OBITUÁRIO | D’ANGELO

D'Angelo, 1995 (Foto de Eric Johnson)

“When I was a young boy, I had visions of fame…’’ foi a aspa que a revista Vibe escolheu, em 1995, para fisgar o leitor no trabalho de um músico com apenas 21 anos. Até então, o entrevistado passava quase despercebido por quem não se atentava aos créditos de colaboração nos vinis de outros artistas. Poucas semanas depois, lá estava ele lançando Brown Sugar, álbum que permaneceria por mais de um ano nas paradas norte-americanas e catapultaria Michael Eugene Archer, ou D’Angelo, ao estrelato musical.

Conheci D’Angelo por acaso. Estava jogando Red Dead Redemption II quando, nos momentos finais, começou a tocar Unshaken (2019). A voz cortou o silêncio. O arranjo, simples e bonito, me prendeu. Naquele instante entendi que não era só uma música. Era um chamado. E ele me alcançou.

Assim como a descoberta foi despretensiosa, o anúncio de sua morte também chegou de repente. Só soube dias depois, ao ver uma publicação no Instagram. Foi horrível. Dói pensar que nunca mais teremos um álbum inédito dele e que nunca poderei vê-lo ao vivo. Mas, agora, o que realmente importa é celebrar sua música e seu legado. Por isso, o Outra Hora realiza, pela primeira vez, um “3 em 1” dedicado a um artista: um mergulho na criação de seus três álbuns de estúdio, lançados em três décadas diferentes — Brown Sugar (1995), Voodoo (2000) e Black Messiah (2014) — para você que, assim como eu, foi tocado por esse herdeiro legítimo da black music.


Brown Sugar (1995)

Se você quer entender quem foi esse cara, precisamos voltar um pouco no tempo. Ele cresceu em uma família pentecostal, frequentando uma daquelas típicas igrejas protestantes negras dos Estados Unidos. A espiritualidade era sonora, cheia de gospel, mas também de soul, jazz e funk. Essas memórias da infância cantando no coral da igreja, combinadas com os primeiros anos da vida adulta em meio à explosão do gangsta rap nas rádios, com Biggie, 2Pac e Raekwon, moldaram de forma substancial toda a sonoridade de Brown Sugar (1995).

O lançamento, diga-se de passagem, era arrojado para a primavera daquele ano. Não apenas por sua ousadia artística, mas também por fatores mercadológicos. O espaço radiofônico para esse tipo de sonoridade havia migrado para outra seara. Esse disco não se aproximava das baladas de Whitney Houston ou de Brandy & Monica, nem dos hits dançantes de TLC ou Spice Girls. Para a gravadora EMI, hoje Sony Music, era uma aposta arriscada. Para o artista, a realização de um sonho.

Até mesmo seus antecessores, de B.B. King, que viria a ser seu parceiro, ao próprio Prince, sempre referência para ele, assim como contemporâneos como Erykah Badu, Maxwell e Lauryn Hill, e aqueles que surgiriam depois, como Alicia Keys, Anderson .Paak e Amy Winehouse, poderiam concordar com uma coisa: o impacto desse álbum foi enorme. Brown Sugar não só colocou D’Angelo no mapa, como praticamente deu vida a um gênero inteiro, o neo soul, termo que ele simpaticamente rejeitava, preferindo dizer que fazia “apenas black music”.

A timbragem dos equipamentos antigos escolhidos para o disco, combinada ao visual e à atitude adotados na divulgação, fez com que as oito faixas do álbum, escritas entre 1991 e 1992 ainda em Richmond, na Virgínia, causassem um impacto cultural que não se via, bem… desde Prince com Dirty Mind e Purple Rain ou Michael Jackson com Off The Wall e Thriller.

Destaques: Cruisin, Lady, When We Get By


Voodoo (2000)

O intervalo de cinco anos entre Brown Sugar e Voodoo é daquelas histórias que não merecem ser reduzidas a uma anedota. Se você fuçar na internet, vai encontrar muitas versões: uma diz que ele vivia um momento complexo pelo nascimento do primeiro filho, outra aponta brigas com a também já falecida ex-esposa, Angie Stone. Não é possível cravar uma resposta conclusiva sobre esse assunto.

Talvez tenha sido um bloqueio criativo ou a dificuldade de lidar com a pressão da indústria em torno da estrela em que se transformou. O que é inegável é a forma como ele se reinventou em Voodoo (2000), desde Send It On, que ajudou a impulsionar o projeto, até a entrega de um álbum de 13 faixas que cumpriu e superou todas as expectativas.

Com 26 anos e uma visão ambiciosa, ele desafiou a lógica comercial e entrou no estúdio com Ahmir "Questlove" Thompson, produtor musical, e Russel "The Dragon" Elevado, parceiro de engenharia e mixagem, com a ideia de criar um disco de raízes. Gravado no Electric Lady Studios, em Manhattan, sim, o mesmo lugar que Jimi Hendrix ajudou a construir, ele se dedicou a celebrar sua ancestralidade, os batuques, as práticas, as línguas antigas e tudo aquilo que alguns afrodescendentes da América do Norte e Central cultuavam. No final, essa devoção se revelaria como uma espécie de… voodoo.

O disco estreou em primeiro lugar nas paradas de álbuns dos EUA, algo que o trabalho anterior dele não tinha conseguido. Na primeira semana, mais de 300 mil cópias vendidas e os primeiros Grammys na estante. Mas com esse sucesso veio também uma pressão pesada. O clipe de Untitled (How Does It Feel), com D’Angelo nu e olhando direto pra câmera, junto com a chegada de uma legião de fãs, colocou ele em choque consigo mesmo. E esse conflito afastou D’Angelo do palco e das câmeras por mais de dez anos, entrando numa espécie de caverna criativa que só ele conhecia.

Destaques: Devil's Pie, Feel Like Makin' Love, Send It On


Black Messiah (2014)

Depois de enfrentar problemas com adicção e reduzir a agenda de shows, muita gente dizia que ele era só uma lembrança vaga de um passado promissor. Que não voltaria aos estúdios tão cedo e que a sombra de discos tão bem-sucedidos poderia tê-lo afastado dos fãs e do próprio ofício.

Mas tudo mudou com o destino de outra pessoa, Trayvon Martin. O assassinato desse jovem afro-americano acendeu protestos pelo país inteiro e expôs como o racismo ainda corria solto. Foi esse choque que fez um músico de 40 anos pegar o microfone de volta e voltar a compor, agora falando não só de amor e sexo, mas do destino de quem encara o racismo nas ruas e nos tribunais.

Black Messiah (2014) é a prova cabal de que ele ainda tinha “as manhas”. Sabia como agradar sem se curvar à moda, entendia exatamente o que entregar, como e quando, mesmo quando ninguém ainda sabia que precisava daquilo. De The Charade, que não tem medo de encarar as feridas que mencionamos acima, ao cancioneiro que é sua marca registrada, o álbum surge como um manifesto artístico tão influente que acabou deixando sua marca no aclamado Lemonade (2016) de Beyoncé, ao tratar simultaneamente de vida pessoal e temas sociais.

É aqui que surge a canção favorita deste que vos fala, Really Love, o grande carro-chefe do álbum. A faixa traz claramente a influência da musicalidade hispânica já percebida em boa parte de Voodoo e em Spanish Joint, de Brown Sugar, mas também revela algo dos bastidores.

Foi escrita e gravada para um amor do passado, cuja voz abre a canção: Gina Figueroa. Curiosamente, essa mesma faixa foi vazada por Questlove para uma rádio australiana em 2007, o que afastou temporariamente os dois parceiros de trabalho, até a retomada da produção do disco na década de 2010, em meio aos protestos que mencionamos anteriormente. Essa introspecção romântica de D’Angelo, ao não deixar claro para quem eram feitas as músicas, parece refletir a forma como ele lidou com as expectativas e pressões dos fãs após os problemas com a fama.

Ano passado, começaram a surgir alguns boatos na Complex sobre a produção de um novo disco. Mas, se esse magnum opus algum dia vir a público, será como obra póstuma, sem que se saiba até que ponto ele esteve realmente envolvido na criação. Ainda é cedo para afirmar qualquer coisa.

Uma curiosidade bem pouco agradável é que a última faixa do último disco se chama Another Life. Talvez algumas coisas só façam sentido em outras vidas mesmo, inclusive a importância desse cara para tanta gente. Ele é o ídolo do seu ídolo, acredite.

Destaques: Ain't That Easy, Back to the Future, Really Love

Caio Profiro

Manauara. Penso e escrevo sobre música desde 2021. Beatmaker nas horas vagas e pesquisador musical em tempo integral. Autor do artigo científico "O samba como território da folkcomunicação: a trajetória do genêro musical de cultura marginal a símbolo nacional".

https://m.soundcloud.com/profiro
Próximo
Próximo

Crítica | Vendrán Suaves Lluvias - Silvana Estrada