CRÍTICA | CRÔNICAS - FLEEZUS

Manipulando esses detalhes tipo flashlights
Iluminado o meu caminho, eu sei quem eu sou
Só mais um mano percorrendo nas ilusões
Buscando achar essa resposta uma oração.
— (V.P.M.M. - Fleezus, Hot, Pastor, CESRV)

Acredito que a particularidade deste trabalho é sua indistinção de qualquer outro álbum de RAP. Não que esse quarto disco de Fleezus seja qualquer coisa e “vamos pro próximo”. Apenas que, essencialmente, todo álbum de RAP é uma crônica. Ou melhor, um conjunto de crônicas. 


A crônica: breve; fruto de observação; com forte carga subjetiva; um espaço textual de experimentação com a linguagem entre a literatura e o jornalismo, e por que não?, entre a prosa e a poesia. O cronista: convida o leitor para a intimidade de sua vida, seus pensamentos, sejam ou não profundos. 

Em parceria com velhos amigos, como o paulista CESRV (BRIME!) e o carioca El Lif Beatz (Slow Flow, Castelos & Ruínas), ainda reuniu nomes mais ou menos conhecidos como LPT Zlatan, P.L.K., Bradockdan, Paulo DK, MAD GUI, Criolo e SD9. O diálogo, elemento normalmente não presente nas crônicas, é um dos pontos que oferece ao disco a dinamicidade necessária para a continuação de escuta. Através da repetição das fórmulas de cada um dos artistas se cria distinção suficiente para se manter coeso e variado. Não sendo um gênero exclusivamente brasileiro, a crônica e as CRÔNICAS (2025) de Fleezus (por influências exteriores ao Brasil como o grime londrino) se utilizam de tópicos como o futebol para ilustrar as relações com a violência (seja na derrota ou na vitória) e com o amor.


A faixa 1 do disco, a intro RÁDIO FLEEZUS, não passa de ambientação. Passando pelo que poderia ser, pela tonalidade, uma pregação evangélica - no caso, um trecho de discurso do deputado estadual do Paraná Renato Freitas, rapidamente se direciona a temática revolucionária. Nesse embalo, a expectativa é para um album disruptivo. A próxima faixa, com citações de Paulo Galo (liderança da categoria de entregadores em SP) QUEM VAI REZAR POR VOCÊS, ilustra em uma sequência de imagens o cotidiano (“querendo acordar cada dia mais cedo”... “o inimigo segue dormindo, acordando só meio dia”), o objetivo (“tirar a mãe do aluguel”) e o modo (“um drible cortei vocês”), vinculando o esporte à constituição fundamental do indivíduo, em seus anseios e repulsas. Finalmente enunciando “quem vai rezar por vocês”, noticia que além de estarem sem saída os inimigos nunca serão absolvidos. 

Seguindo as narrativas, ANJO45 retoma a canção de Jorge Ben Jor em tom profético. É a vitória do malandro-ícone, auto-referenciado, da comunidade. 

O palco virou a sua casa
Os fãs sua família, quem diria
Que causaria tanto incômodo
Os porcos só assistindo
Ele tá virando o jogo
Uma taça de champanhe
Pra quem reconhece esforço
— (ANJO45)

Seguindo o corre das notas e a dinâmica incessante do neoliberalismo de auto aperfeiçoamento constante, o esporte da moda entra em evidência. A corrida. Barata, prática, acessível. No pós-pandemia a prática se popularizou e foi apontada como “modinha”, claro, quando praticada por pessoas de uma certa cor e de uma certa classe. PACE DE MALANDRO marca uma mudança de tom no disco, como a calma antes da tempestade. CONTRAMÃO estabelece oposições quebrada/playboy ou entre MCs: “Cê' não mosca, que vou roubar o pódio”. Além disso, LPT Zlatan e P.L.K. trazem um flow diferente permitindo à música o rearranjo necessário. JÓIA RARA, com Criolo, tem um refrão chiclete e beat grudento, emanando a ideia de um filme de assalto. 

RIVAIS  introduz um clima melancólico, relembrando o peso: “desce gelo, esse é o meu jeito”; e as responsabilidades de se tornar o homem da casa “quem vai proteger a família eu não tando perto?”. Em PURO, CESRV marca presença com seu beat mais diferenciado e celebra a relação deles como, o projeto BRIME (2020).

Falaram de futebol lembro de 2012
Os Chelsea de cara torta, como foi divertido
Juntamo a banca sinistra, Febem, Fleezus e Cesinha
Cortando samples de funk no grime, criamos siglas
— (PURO)

2 GLOCK se destaca pelos beats de funk escancarados, com destaque para as relações de concorrência (perrecos, invejosos e recalcados. Em C.A.R.D.S, a crítica ao estereótipo softboy é um dos poucos acertos (junto a presença de Bradockdan, que nesse ponto mesmo acompanhado de um beat bem produzido já não causa tanto impacto), fazendo um paralelo entre vestimenta e branquitude:

Contabilizando a cifra e nessa partida
O mano não vai tomar ban
Liguei o fle na matina, vi sirene de polícia
Eu troquei a tech num cardigan
— (C.A.R.D.S.)

Desde PURO, o clima é mais de comemoração que qualquer outra coisa. Nesse clima, NOIS É NOIS parece ter como única temática a autopromoção. V.P.M.M. melhora um pouco pela participação de Hot e Pastor, ambos de BH, com a lírica mais suave e alguma coisa de reflexão metalinguística. Algo como a arte salva e o artista vive essa dinâmica de salvar ser salvo pelo próprio trabalho. E mesmo quando Hot parace desviar de assunto falando de maconha e sexo parece que há uma parte de sagrado nisso. Um ato de amor assim como a arte.

E falando em amor, as últimas duas faixas são lovesongs. M3  cantando de um encontro futuro, desejado, andando de BMW e aproveitando um dia na psicaina. PASSAPORTE, narrando uma visão consumista de uma vida idealizada com essa mulher dos sonhos que sequer foi mencionada antes das lovesongs. Quadros de Murakami, passeios em Paris e Barcelona, comprando joias, Dior e fazendo ligações por FaceTime. É muita fetichização para um disco que começou citando duas das lideranças políticas mais relevantes na esquerda brasileira e clamando pela revolução. 


Talvez o título CRÔNICAS possa isentar o autor de uma suposta unidade entre as distintas faixas/textos que compõem o disco. Para mim, desde a faixa PURO as coisas se perdem um pouco. Se antes as temáticas de competição e dificuldades sociais se apresentavam na ótica de uma mudança de perspectiva de ver o mundo. Ou seja, essa “competição” era ancorada em uma perspectiva emancipatória, pro final do disco tudo se resume a vender mais um disco, achar uma gata e curtir a Europa. As músicas são ótimas, mas o descompasso ficou escancarado. Não passa de oração: fala muito, mas para ninguém. Descarrega a consciência e o mundo segue o mesmo.

7.0








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