Entrevista | A doçura e a verdade de Bia Doxum em seu novo álbum

Questionamentos sobre o amor permeiam o segundo disco da cantora, que, de forma confessa, navega pelas águas turvas de um romance


"O coração, se pudesse pensar, pararia". A frase do poeta Fernando Pessoa capta perfeitamente o paradoxo do amor: um sentimento que, em sua intensidade, desafia a razão e, ainda assim, nos move. Esse contraste também pulsa nas canções de Bia Doxum, que encontra nas nuances do coração o fio condutor para Desse Meu Mel, seu segundo álbum. "Eu acho que já vivi muitos amores, né?", confessa a artista, que complementa: "Gosto de me jogar e experimentar".

Esse mergulho nos sentimentos é o que dá forma ao novo trabalho de Bia. Com 13 faixas – o mesmo número do seu álbum de estreia, ÀTÚNWA (2019) –, Desse Meu Mel conta com o retorno de Vibox na produção de algumas faixas, acompanhado por um time estelar de beatmakers e colaboradores.

Não foi golpe de sorte que a artista da Zona Leste de São Paulo tenha sido reconhecida pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) com seu primeiro disco. Ela integra um novo panteão de vozes negras que vêm transformando a música brasileira, ao lado de artistas como Jota.pê, Liniker, Os Garotin, Ajuliacosta, Gaby Amarantos e tantos outros. E, por uma feliz coincidência, o novo trabalho de Doxum chegou às plataformas no dia 22 de novembro deste ano, Dia do Músico – uma data certeira para celebrar o talento de quem faz música com tanta verdade.

Ela explora temas variados no novo trabalho: a esperteza no jogo da vida em "faceira", abertura com um groove diferenciado; memórias de um amor quente em "sexta de manhã" (com participação de Fabriccio); os desdobramentos de uma conexão inesperada em "dentro de um flash" (com participação de Camila Zasoul); e um drink de duplo sentido em "kariri", com versos de Marabu. Todo o repertório carrega um tom ardente e adocicado – como um gole de bebida com mel, que vai ficando mais doce à medida que você prova.

De peito aberto, a artista compartilha em entrevista como o cotidiano de sua carreira independente – em meio às experiências da vida –, refletem nas letras do seu novo lançamento. Confira:


Caio Profiro, colaborador do Outra Hora: Do ÀTÚNWA para o seu disco atual, se passaram cerca de cinco anos. Essa "demora" para um trabalho inédito teve alguma razão específica?

Bia Doxum: Logo depois que a gente lançou ÀTÚNWA, entrou a pandemia, então foi um momento muito atípico. Foi também um momento em que tive que olhar mais para dentro, e acho que isso resultou nesse mergulho de Desse Meu Mel, que é um trabalho mais íntimo. Para além dessas questões de me aprofundar em mim mesma, tem as dificuldades de ser um artista independente, de lançar um trabalho bonito, de verdade, sem patrocínio, sem apoio, literalmente enfrentando muitas batalhas. Acho que essa também foi uma das razões para ter demorado tanto. Na parte criativa, fui muito cuidadosa. Quando estava em estúdio, não quis ter pressa e, mesmo depois de ter tudo pronto, ainda havia toda a parte burocrática para lançar. Isso acabou resultando nessa longa espera. Mas também tem a questão de que, quando não fazemos um trabalho plastificado e buscamos algo mais orgânico, autêntico, com um conceito bonito, isso demanda tempo. Acho que não é possível lançar um trabalho tão expressivo todo ano ou todo mês. Foi um tempo de amadurecimento, e acho que ele consegue transparecer esse crescimento. Era isso que eu queria. Por mais que tenha demorado, acredito que foi o tempo necessário para mostrar esse novo nível, essa nova fase, essa nova faceta, da forma como realmente gostaria de apresentar, sabe?


 Outra Hora: Na concepção do disco, há uma mistura de sonoridades nos arranjos e nas referências de composição, mas o groove do R&B parece ser o ponto de partida. Por quê?

Bia Doxum: Sim, o R&B tem sido um gênero no qual eu me sinto muito à vontade para fazer o que eu quero. Acho que é um gênero em que consigo reunir os elementos das brasilidades com as quais me identifico, como samba-canção, bolero, e essa poética romântica do samba. E também consigo trazer elementos eletrônicos, porque o R&B aceita muito bem sons mais experimentais. Eu consigo juntar o groove do neo soul, do hip hop, que também me encanta muito. Acho que o R&B aceita minhas várias facetas, especialmente essa faceta mais romântica, que é um lado meu que estou gostando muito de explorar.


 Outra Hora: Quais artistas te inspiraram durante o processo de criação do novo álbum?

Bia Doxum: Uma referência para mim é a Sade, uma cantora que eu gosto muito, minha cantora favorita, na verdade. Também me inspiro muito na Tássia Reis, porque ela consegue transitar por diversos gêneros. Ela navega entre o rap, o samba, o soul e também passa pelo R&B. Então, ela é uma artista que considero uma grande referência. O Fabriccio também é um artista que me inspira musicalmente. Acho que a forma como ele trabalhou no álbum Selva (2021), trazendo elementos do soul e das brasilidades, me inspira muito. Ele é um dos feats do meu álbum, porque realmente sinto que a gente se conecta musicalmente. 


Outra Hora: Quem te acompanha percebe que seu projeto musical está mais alinhado à construção de um conjunto, como a de um álbum, do que à lógica comercial de lançamentos avulsos (singles). Você sente alguma pressão para se adequar às demandas da indústria?

Bia Doxum: Sim, essa pressão existe, porque a gente tem que trabalhar, tem que achar uma forma de fazer dinheiro com a nossa arte, porque é uma vida inteira dedicada a isso. Tem sido cada vez mais difícil se manter fazendo uma música que não visa somente atender à demanda da indústria musical contemporânea, que não visa somente o comercial. Então, tem sido uma batalha árdua, mas estou sempre tentando achar um meio-termo entre o comercial e o autêntico, entre algo que possa alcançar um público maior, mas que, ao mesmo tempo, sempre olhe para as raízes daquilo que eu falo e mantenha aquela base de público que já é leal a mim. Eu tento encontrar um meio-termo aí. A linha é tênue, mas acho que esse álbum é um exemplo disso. Acho que ele consegue transitar entre algo um pouco mais pop e algo um pouco mais underground, que, querendo ou não, faz parte da minha história.

Interrompo a entrevista para dar um complemento à resposta de Bia. Aos 15 anos, iniciou sua carreira como "Bê O", influenciada por ícones do rap como Racionais MCs e MV Bill, e logo lançou seu primeiro EP, Boletim de Omissão. Mas, como a própria artista contou, todo músico passa por mudanças de direção ao longo da carreira – e com ela não foi diferente. Depois de se formar em Canto Popular pela ETEC de Artes de São Paulo, ela sentiu a necessidade de evolução. Foi então, em 2015, que "Bê O" se transformou em "Bia Doxum" – e com essa mudança veio ÀTÚNWA, que já comentamos aqui.


Outra Hora: Continuando nossa conversa, percebi uma similaridade entre Sem Fingir (2024) e Balaio de Amor (2019). Ambas as músicas retratam a mesma história de amor?

Bia Doxum: Eu acredito que essa similaridade vem do produtor, o Vibox, com quem trabalhei no meu álbum ÀTÚNWA, nas faixas "Balaio de Amor" e "Seu Presente". Agora, voltamos a nos reunir em estúdio para o álbum Desse Meu Mel, em que ele assina as três primeiras faixas: "faceira", "sem fingir" e "sexta-feira de manhã". Nossa parceria funciona muito bem porque temos uma conexão natural no estúdio. Gosto da musicalidade dele, dos acordes que escolhe e dos timbres que fogem do óbvio. Quando trabalhamos juntos, consigo explorar uma amplitude musical que me abraça e me permite expressar tudo com muita fluidez.

Mas não, não é a mesma história de amor (risos). Eu acho que já vivi muitos amores, né? Eu gosto de me jogar e experimentar, embora sempre com muita cautela. É difícil eu me encantar, mas, quando me encanto, busco extrair o máximo daquilo, da poesia, daquele sentimento. É como tirar o máximo de suco de uma fruta, sabe? É raro eu me permitir sentir isso, mas, quando sinto, vou criando possibilidades e até inventando poesia. Deixo tudo mais bonito. Coisa de compositor, né? A gente vai enfeitando a vida. São histórias diferentes.


Outra Hora: Falando do presente, o que você espera das pessoas ao te escutarem com Desse Meu Mel? Imagino que a ansiedade de colocar o som na rua seja uma mistura de sensações.

Bia Doxum: Eu espero que, com esse novo álbum, o meu público se conecte comigo verdadeiramente. Eu me coloquei de uma forma muito sincera, muito transparente, não tive medo e nem vergonha de expor o meu lado mais frágil, o meu lado que mais se derrama. Então, eu fiz isso estrategicamente para que as pessoas também pudessem se ver nesse espelho de sentimentos. Às vezes sentir é uma coisa tão difícil, principalmente da gente externar. Então, eu quis me colocar ali muito inteira e eu espero que esse álbum se conecte com as pessoas dessa forma inteira, verdadeira e intensa.


 Outra Hora: E quais são os planos para o futuro? Já olhando para 2025, que está à porta, existe alguma colaboração ou festival dos sonhos?

Bia Doxum: No próximo ano, quero me dedicar a rodar com o meu novo disco em muitos shows, não só em São Paulo, mas também em outros estados, e por que não, em outros países? Acho que esse álbum, a sonoridade que ele carrega, se enquadra bastante em alguns festivais, como Coala Festival, Rock in Rio, Lollapalooza. Acredito que nós temos muito para mostrar em cima do palco e estamos prontos para grandes palcos. Eu almejo chegar nesses lugares com a minha música. Nós vamos conseguir.

Caio Profiro

Manauara. Penso e escrevo sobre música desde 2021. Beatmaker nas horas vagas e pesquisador musical em tempo integral. Autor do artigo científico "O samba como território da folkcomunicação: a trajetória do genêro musical de cultura marginal a símbolo nacional".

https://m.soundcloud.com/profiro
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